ORIGINAL

Já tinha ligado e desligado o computador umas quatro vezes com o Word ativo quando atendeu a ligação:

— Alô?

— Oi? Me ligou?

— Não. Devo ter clicado no "call" sem querer.

— Ah tá. E aí? Terminou? Tá revisando já?

— Que nada. Não sai nada dessa tela. A mente tá mais branca que vela de batismo.

— Mas você assistiu aquele vídeo lá que eu te mandei? O cara dava umas dicas muito boas sobre como criar um conto legal.

— Mano, sinceramente… eu já assisti tanto vídeo que tudo que escrevo são só dicas dos outros . Nada prático.

— Vish! Que tipo de história você tem que criar?

— Qualquer uma. O problema é que tem prazo e se virar o mês e eu não tiver escrito nada até primeiro de março eles me cortam da antologia. Quase todo mundo já tá na fase de revisão. Tinha que ver o conto do Daniel e do Clayton José. E o da Juliana? Quando terminei de ler e fui escrever o meu, só depois de umas trezentas palavras digitadas percebi que 'tava praticamente copiando a ideia dela.

- Caramba, cara. Que dose, hein. Faz assim: sai um pouco. Espairece a cabeça. Lê alguma coisa legal. Sei lá. Se distrai por um tempo. Quem sabe amanhã você acorda afiado.

— É. Pode crer. Vou pensar nisso. Vou desligar. A bateria aqui já tá apitando.

— Falou. A gente se fala amanhã.

— Falou…

— Velho, e se você inventasse um bagulho desse naipe…

— Ah! não, cara. Na moral, eu amo novas ideias e sugestões de outros. Mas desculpa a franqueza, tô de saco cheio de não conseguir criar nada por mim mesmo, sabe. Toda hora preciso ter "ideias dos outros" pra bolar a minha. Aí sou cópia sempre.

— Não. Não é isso. Olha só, liga o PC aí.

— Tá. Já liguei. Que é que tem?

— Vai no Word.

— Peraí… é que eu uso versão antiga ainda e toda hora pede pra atualizar e sempre esqueço.

— Calma. Sem pressa.

—Tá quase…

— E aí? Abriu?

— Beleza. Foi.

— Pronto. Qual é o gênero que você quer criar?

— Ah! Sei lá. Terror. Suspense. Crime. Gosto dessas coisas.

— Fechou. Uma pergunta: o que é que mais te dá medo?

— Ixi. Eu já fiz essa pesquisa no Google e vai por mim… não aguento mais escrever sobre fobias. Todo mundo tem medo de palhaço, escuro, altura, aranha, cobra, de morrer, de fantasma e o raio que o parta.

— Pega um medo estranho. Tipo… medo de se coçar.

— Por que alguém teria medo de se coçar, cara?

— Não sei. Às vezes ele pode pensar que a pele vai cair. Ou que fazendo isso vai estimulando sexualmente. Ou que…

— Velho, não viaja. Concordo que é uma sacada da hora. O problema é que ela já é tua. Quero criar algo que eu possa dizer: "Mano, só pode ter sido o fulano que criou isso." Entende?

— Ok. E se você falasse sobre divórcios?

— O que tem a ver terror e suspense com divórcio?

— Faz uma história de uma criança que desde pequena via os pais em conflito, mas sempre temeu o divórcio deles. Aí ele fosse descobrindo traição de um e outro. Ou um maltrato, um segredo como uma doença, impotência, quem sabe até uma dívida pra pagar um agiota e o cônjuge teve que se separar pra não perder a família.

— Que exagero rsrs.

— E eu tô errado? Não é assim na vida real?

— Eu sei. Tô zoando. É. Bacana. Mas não sei não. Como faço alguém perder o sono com essa história?

— Faz assim então. Uma avó morta que vira fantasma. Ela sempre aparece nas fotos, mas ninguém vê que ela muda de posição nas fotografias de família. De dia ela aparece de um jeito. De noite ela muda de roupa na foto. Exemplo: se de dia ela usava chapéu amarelo e vestido branco de bolinhas vermelhas, a noite essas bolinhas vermelhas ficam pretas e o vestido fica cinza. Ou se ela estava no lado direito, aparece no esquerdo.

— Já inventaram um filme assim, né?

— E eu sei lá. Tenho cara de que fica o dia todo assistindo filmes? Presta atenção no enredo. De repente a foto cai e quando vai perceber só a avó tá na foto.

— Calma aí. Mas se "só a avó está na foto" subtende-se que ela só tirava foto com a família, certo?

— Oi?

— Oi o que?

— Oi o que o que? Do nada você falou um negócio aí que eu não entendi nada.

— Olha cara, faz o seguinte, meu celular vai descarregar. Amanhã a gente troca uma ideia, tranquilo?

— Calma aí. Só mais uma. Por favor, só mais uma.

— Ok. Diz logo que eu já tô ficando com raiva.

— Caramba. É assim que você me agradece? Pelo menos sou o único que tá se importando em te ajudar né.

— Foi mal. Só tô meio preocupado. É horrível quando você força a cabeça e não sai nada. Você se sente a única galinha que não bota ovo.

— Eu entendo, cara. Mas relaxa.

— Como que relaxo, mano? Como que relaxo? Tenho até final do mês pra escrever a porcaria de uma história, seja de terror, suspense ou mistério, todo mundo já tá na fase de revisão, só Eu até agora não escrevi NADA, dei um duro do caramba pra poder ter a chance de participar da antologia, sempre quis ter alguma coisa publicada do que escrevo, e agora que é minha chance, aquela chance de ouro, o pênalti final, a cesta de três pontos nos segundos finais do jogo, a minha visão literária embaça e você quer que eu R-E-L-A-X-E? Vai relaxar na...

— Ô ô ô! Se acalma, parceiro. Que estresse é esse? Agora só porque você teve branco a culpa é minha agora?

— Ah mano! Me perdoa. De verdade. É que não tô com paciência. Tô frustrado que só. Desculpa mesmo.

— Pô, cara. Tá chorando?

— Não... não tô.

— Tá sim. Tô ouvindo você fungar aí. Te conheço, meu.

— Ah cara. Cara… como é ruim! Você se sente um lixo, sabe. Sente que seu esforço não vai pra lugar nenhum. Tenta se dedicar, mas aí começa a perceber que não nasceu pra aquilo e que é melhor tentar outra coisa…

— Foi mal, mano. Eu não queria te pressionar. Só queria te dar umas ideias mesmo. Pra criar uma história legal, entende? Talento você tem. Eu sei que é difícil. Tem horas que some tudo da cabeça. Mas aí: se você só ficar olhando pro trampo dos outros vai chegar em lugar algum. Olha pra você, meu. Você consegue. Raciocina comigo. Já criou tanta coisa boa. Pensa, cara. Pensa!

— Valeu, cara. Obrigado mesmo. Me deu a maior força. De coração.

— Que isso. Você sabe que se precisar, "tamo junto e misturado" pra o que der e vier. Tranquilo agora?

— Tô ligado. Obrigado de verdade. Meu celular tá com 1% já. Me diz aí. Qual era a última ideia que você ia me sugerir?

— Escreve nosso diálogo.

— Ué. Pra quê?

— Pode inspirar outras pessoas. Sei lá. Às vezes uma conversa simples, um diálogo real motiva mais. É tipo um "abrir o coração", entende?

— Tá. Eu vejo aqui e te falo. Valeu mesmo. Vou desligar aqui.

— Tudo bem. Se cuida, Leandro. Me liga amanhã.

— Beleza. Fica com Deus... peraí. Quem tá falando?

Então tirou o chinelo do ouvido.

— Mais que…

Leandro Severo da Silva
Enviado por Leandro Severo da Silva em 13/02/2020
Reeditado em 13/05/2020
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