1140-MALDIÇÃO DIVINA -

— Sente-se. João de Deus!

Era o que mais se ouvia nas aulas de religião, classe do segundo ano do Ginásio Paraisense. Irmão Germano, o professor, não estava preparado para as questões do nosso colega João de Deus, que jogava a esmo, na maioria das vezes sem nada a ver com a explicação de catecismo (sim, nada mais era do que a leitura

de partes do catecismo, que praticamente todos os alunos já haviam aprendido aos seis ou sete anos, antes de fazer a primeira comunhão).

A pergunta formulada por João de Deus era capciosa e totalmente fora do “contexto” da aula:

— Irmão, O senhor não acha que Deus, ao expulsar Adão e Eva do Paraíso, cometeu uma grande falta de caridade? E Ainda mais lançando aquela série de maldições... maldições divinas!

— Sente-se, João! Não estamos tratando disto agora.

O irmão Germano, com certeza descendente de alemães, natural do Rio Grande do Sul, era o pior dos professores do ginásio. Lecionava francês, geografia, história e religião para o primeiro e o segundo anos. Trabalhos manuais era sua cadeira exclusiva, que ia da primeira a quarta séries. Tudo com baixa ou nenhuma competência.

Quando se aborrecia, (e era constantemente aborrecido pelas perguntas de João de Deus) seu rosto se avermelhava e sua voz denotava, sim, um pouco de ira. Batia com o punho na mesa e parecia que tremia um pouco. Eu via porque me sentava na primeira carteira, bem defronte à mesa do professor.

João de Deus matriculou-se direto na segunda série. Nunca fiquei sabendo (apesar de me tornar seu amigo, além de colega) se ele viera de algum colégio ou mesmo do seminário. Teria uns quinze ou dezesseis anos, era já quase um rapaz, quando a maioria dos colegas do segundo ano andava pelos doze ou treze anos. Na fila para entrada em classe, era o último, pois era o mais alto.

Fiquei sabendo, mais tarde, quando ia à sua casa para estudarmos juntos (ele era bom em matemática) que seu pai era maçom. Dado o nível de suas perguntas nas classes de religião, eu desconfiava que seu pai o incentivava a fazer aquelas perguntas, para desafiar e embaraçar o irmão Germano.

Eu gostava de conversar com ele. Nos intervalos entre as aulas, nos rápidos dez minutos de recreio eu quase sempre conversava com ele. Embora eu fosse católico fervoroso e tivesse sido coroinha, ou acólito, na capela do colégio das freiras e usasse o escapulário (1), já tinha umas coisas de religião que me faziam pensar.

Havia ganhado de Tótó do açougue um livro grosso, encadernado, impressionante tanto pela apresentação quando pelo título: “Raiar de um Novo Dia”, que tratava de assuntos religiosos, do ponto de vista do autor Roy F. Contrell, pastor da Igreja Batista do Sétimo Dia. Li com avidez os capítulos do livro, ás vezes até mesmo sem entender alguma coisa, aguçado pelo mistério que se me apresentava as afirmações do autor, bastante diferentes do que havia aprendido no catecismo e no que fui aprendendo depois.

Então, seguia João de Deus para conversar. No próximo recreio daquela classe em que ele falara da “maldição divina”, estava até um pouco assustado, o que me levou a procurar o João tão logo saímos da classe.

— João, que história é aquela de maldição...?

— Maldição divina. Tá com medo de falar?

— Não. Quero saber como pode Deus lançar maldições.

— Pois, Gobbinho, foi o que Jeová fez.

— Jeová? Ou Deus?

— Esse era o nome de que os judeus davam a Deus. Então, o que ele fez: Primeiro, criou Adão e Eva, deu-lhes inteligência sob a forma de um sopro divino, e proibiu de fazer alguma coisa, que não foi, de modo nenhum, comer a maçã. Isto é besteira. Mas, de qualquer forma Adão e Eva desobedeceram a Jeová, que devia amá-los como um pai ama seus filhos.

— É, eles foram os primeiros filhos de Deus.

— Então, Adão e Eva cometeram uma desobediência. E quando Jeová, ou Deus, descobriu, tratou os dois como se fossem grandes criminosos. Expulsou-os do Paraíso e castigou com dureza:

Vão ter que trabalhar prá viver, Eva vai sentir dores ao dar a luz seus filhos, e vocês vão voltar ao pó, isto é, morrer.

— É, Deus ficou muito brabo.

— Pois é. Qual é o pai que quando o filho erra, não perdoa e procurar ensinar-lhe como não errar mais?

João de Deus parou para dar uma mordida no sanduiche que havia trazido para lanchar.

— Quer um pedaço?

— Não, obrigado.

Ainda com a boca cheia, prosseguiu:

— Foi maldição, sim. Quando devia amar e perdoar seus filhos, não só castigou com a expulsão do Paraíso...

O sino bateu, avisando que estava na hora de formar a fila para entrarmos na classe. O que não impediu de João concluir seu pensamento:

—... como também lançou aquelas palavras que foram verdadeira Maldição Divina.

(1) – Ver conto “O Escapulário”.

ANTONIO ROQUE GOBBO

Belo Horizonte, 22 de Janeiro de 2020

Conto # 1.139 da Série INFINITAS HISTÓRIAS

Antonio Roque Gobbo
Enviado por Antonio Roque Gobbo em 13/02/2020
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