O quadro abstrato, um diálogo
Ambas as duas diante de um quadro.
O que vê?
Cores, caos, causos, coisas. Não faz sentido.
Parece a vida, não?
Ambas sorriem.
Ainda assim... Preferiria algo mais concreto, mais poético.
Concreto como uma rocha? Poético como... Pushkin?
Não gosto de Aivasovski. Gosto dos holandeses.
Eu também. Alguém deveria pintar o Distrito da Luz Vermelha.
Alguém deve tê-lo feito.
Alguém como Vermeer?
Alguém deve tê-lo feito.
Ambas silenciam e continuam a observar.
Queria algo concreto.
Veja um documentário.
O que o cinema tem a ver?
O pintor... perdeu o seu capital que era a realidade. Chegaram os fotógrafos, e depois os cineastas. A concorrência tornou-se desigual. Como superá-lo: o problema?, pensou o pintor, e virou-se para o abstrato. Isso é a arte moderna. A arte, de certo modo, sempre foi fuga, escapismo. Do que ela escapa agora? Da imagem, das formas prosaicas, da ciência, da realidade, como queira. Imagine Aivazovski hoje pintando navios cargueiros, cruzeiros de luxo e milionários em jet ski, se fosse mais ousado pintaria piratas da Somália. Não; ele seria um imitador, um falsificador, um visitante assíduo do Hermitage.
Ambas refletem.
Há abstração na fotografia e no cinema.
Não digo que não. Tornam-se eles também paulatinamente conscientes da superabundância da representação concreta que nos cerca: televisão, sinais de trânsito, estampas, cartazes, capas de jornais, painéis publicitários, computadores e seus derivados, informação, informação e as composições mentais que inevitavelmente as acompanham. l'image, l'image, l'image.
Como escapar, certo?
Oui, regardez.
Ambas observam o quadro.
E agora: vê a poesia?
Muito cedo.
Há em um eletrocardiograma mais poesia que num moderno melodrama.
A que mídia se refere?
A qualquer uma.
Ambas as duas agora dividem o quadro com outra mulher.
Melhor seguirmos adiante.
Por quê?
Perdi a sensibilidade. Estou com fome.
Ah, isso é grave.
Gostou desse quadro?
Não, não gostei.
Por que continua a mirá-lo?
Por que continuamos as duas a mirá-lo? Tu, eu não sei, eu o faço para entender.
Entender o que?
Por que ele não me agrada.
Quanto tempo esse processo vai durar?
Ambas as duas sozinhas novamente.
Já acabou.
Rembrandt.
Holandês.
O que ele pintaria hoje?
Nosso moderno Aivazovski. No Hermitage. Pensativo, e um tanto triste, sob uma luz fraca, diante de Esaú e Jacó de Matthias Stomer. Hipnotizado pela luz da vela, pensando que imitá-lo à perfeição não lhe seria suficiente: desejando no fundo tornar-se abstracionista.
Rembrandt conseguiria transmiti-lo na sua pintura?
Não, e nem Stomer e seu Esaú e Jacó, só a tristeza e a luz de nosso século.
Por que ir tão longe em devaneios?
Meu quinhão de melodrama. Por isso não precisamos dele, produzimo-lo constantemente.
Ambas observam o quadro e a sua poesia.