À Espera e o Chá
A música, o assombro que combina as qualidades abstratas da matemática ao incomensurável domínio da sensualidade. Uma canção querida que de súbito se nos chega à noite; o rádio sabe que de todas é ela a melhor, a que se manifesta sem ser esperada, quando os sentidos, sem o teso senso da expectativa, repousantes, vulneráveis, abertos, a recebem em si; não como resposta a uma demanda exigente e faminta, que sobrepuja de antemão parte do real com a fantasia, qualidade de todos os planos e de todos os sonhos, fisiológicos, em última análise, sensuais, débeis diante da realidade que o inesperado proporciona, da música que vem do canto do quarto, das ondas de rádio; a contingência de alguém que a pediu ou deliberadamente a executou, planejando, antecipando uma comoção, diferente de mim que não a esperava, que liguei o rádio durante a madrugada enquanto preparava um chá.
Um cão late. Há alguém ao portão; mas o portão não é o meu, nem o cão. O chá pronto fumega nas minhas mãos. A grama, coberta do sereno orvalho, do orvalho sereno, umedece meus pés e minhas pernas, mas o chá nas mãos e na língua é quente, e o cão late, portanto há alguém ainda ao portão, alguém que me mira e fala
Oi moço, sabe se tem alguém em casa?
Não, não sei, não os conheço bem. Sabia que Jeff Buckley morreu aos
trinta anos? O pai morreu com vinte e oito.
Não, não os conheço...
Tu não se importa muito com música, se importa?
Sim, eu me importo. Sei que Schubert morreu com trinta e um anos e
não completou uma sinfonia. É triste.
Sim, é triste. Quer chá?
De onde vem essa música?
De casa. Quer chá?
Fica para outra hora. Acho que não tem ninguém em casa.
Acho que não. Vai voltar amanhã?
Acho que não. Tenho vinte anos, melhor tentar outra coisa.
Há quantas anda a tua sinfonia?
É uma ópera, e a ária em que estou é triste.
Vou pegar mais chá.
A rádio havia encerrado a sua programação musical, o cão também, encerrara sua ladainha, acostumou-se a contingência das coisas; mas voltou a latir pouco depois, quando a moça que então esperava, antes de lançar-se correndo embora, a chuva começaria a cair, debruçou-se sobre o meu portão e gritou para toda a rua ouvir que Tupac havia morrido aos vinte e cinco anos.