O Grande Cão

Há muitos séculos, aparentemente incapaz de suportar a perspectiva de se tornar o futuro governante de Sonorlogo, o príncipe-herdeiro Roderico enlouqueceu. Seus pais perceberam que havia algo de muito errado quando o rapaz tirou as roupas e começou a andar de quatro, latindo e arreganhando os dentes para os servos do palácio.

- Que bizarrice é essa, meu filho? - Questionou Nicanor, o príncipe-regente.

- Eu não sou seu filho, sou um cão - retrucou Roderico. - De hoje em diante, irei residir com os da minha espécie, no canil.

Debalde foram as tentativas para que o príncipe-herdeiro voltasse à razão. O príncipe Nicanor ordenou então que Roderico, o cão, fosse abrigado num canil separado dos demais cães de caça, com uma cama de palha, uma tigela de água e outra de comida. Exceto os pais e um servo de confiança, ninguém mais tinha acesso ao local.

- Que terrível catástrofe abateu-se sobre Sonorlogo! - Recriminou-se Nicanor, ao discutir a situação com sua esposa, a princesa Lianor.

- E o que pretende fazer, senhor meu marido? - Indagou Lianor, mortificada por ver o filho em tão degradante situação.

- Irei anunciar uma grande recompensa a quem lograr devolver Roderico ao seu juízo perfeito - replicou o príncipe. - Todos os sábios, sacerdotes e curandeiros do principado serão convidados a apresentar soluções.

Tendo assim deliberado, uma grande romaria de versados em ciências ocultas e exotéricas afluiu ao palácio, alguns interessados somente em receber a soma prometida, outros preocupados com o futuro do principado. Afinal, o que se poderia esperar de um herdeiro louco? E se, ademais, ele houvesse contraído raiva?

Nenhum dos visitantes, contudo, conseguiu obter qualquer resultado prático. Até que um dia, adentrou o salão de audiências do palácio um velho peregrino, apoiado num bordão.

- Eu posso curar o príncipe, alteza - declarou. - Mas devo avisar que meus métodos não são nada ortodoxos.

Desesperados, os pais de Roderico aceitaram as condições do peregrino. Ele foi levado até o canil, e em lá chegando, tirou suas roupas e foi andando sobre quatro pés até o canto onde estava o rapaz. Ambos trocaram latidos.

- Quem é você? - Questionou Roderico. - O que faz aqui?

- Eu sou um cão - declarou o peregrino. - Meu nome é Feram.

- Este canil é meu! - Exclamou Roderico, arreganhando os dentes. - Ponha-se para fora daqui!

- O canil não pode ser seu, pois sou mais velho do que você - retrucou Feram. - Mas vou permitir que continue a morar aqui, se você se comportar.

E assim, ambos ficaram residindo no canil, e Feram, a pouco e pouco, foi convencendo Roderico de que, embora fosse um cão, não estava proibido de usar roupas. E depois, de comer à mesa, num prato. E finalmente, de se comportar como um ser humano. Poucas semanas depois, o príncipe-herdeiro estava curado.

Questionado pelo príncipe-regente sobre como chegara ao método utilizado, Feram explicou:

- Eu sabia que se o príncipe Roderico questionasse minha ascendência dentro do canil, teria que reconhecer que era o príncipe-herdeiro, e só assim o fazendo poderia me colocar legitimamente para fora de lá. Portanto, na cabeça dele, o príncipe ainda pode imaginar que é um cão, mas provavelmente irá se comportar como homem que é por medo de que eu volte e reclame o território do canil de volta.

Nicanor e Lianor concordaram que era melhor ter um cão se fazendo passar por um príncipe, do que um príncipe se passando por um cão. Como se sabe, há homens menos confiáveis do que a maioria dos cães.

- [14-12-2019]