A Porta-Voz de Satã
Assim que a ligação foi completada e ela ouviu um "alô" sonolento do outro lado, começou a falar, de supetão:
- Papai, o senhor tem lido os jornais? Ou visto TV ultimamente?
- Ah... oi filha. Não, você sabe que eu não perco tempo com essas bobagens comerciais.
- Papai, como se não bastasse a perseguição que sempre sofremos, por parte de toda sorte de lunáticos e cristãos fundamentalistas, agora viramos o centro de um escândalo nacional. Se quer saber, estão nos acusando de sequestrar crianças e sacrificá-las em rituais de magia negra! Até aquelas mutilações de gado, que estavam creditando a discos voadores, agora estão colocando na nossa conta!
- Desde que fundei a Igreja de Satã, antes de você nascer, que tinha consciência das dificuldades que teria que enfrentar - ponderou o pai em tom pachorrento. - Ir contra a corrente das religiões estabelecidas nunca foi o caminho mais fácil, mas é o que escolhi trilhar.
- O senhor escolheu, pai - replicou ela enfaticamente. - Eu nasci nele, e há momentos em que me pergunto o que estou fazendo seguindo uma religião que foi abandonada por quase todos os seus adeptos e que hoje se resume praticamente no senhor, em mim, mamãe, e uma lista de mala direta!
Pela primeira vez, ele soou genuinamente preocupado do outro lado.
- Filha, você é a Grande Sacerdotisa da Igreja de Satã... e a última pessoa de quem eu pensaria ouvir tais palavras de descrença.
- Pai, o que eu gostaria de saber é muito simples: quais são seus planos para defender a religião que o senhor mesmo fundou?
- Planos? - Indagou ele, confuso. - Eu não quero ter que me envolver novamente com a mídia comercial, você sabe... muito menos com tabloides sensacionalistas.
- O senhor vai ter que fazer alguma coisa, ou não teremos só loucos dando tiros na porta da Casa Negra... corre o risco de ter que ir dar explicações à polícia!
- Mas que absurdo está dizendo! Somos estudiosos de magia negra, não molestamos crianças, sacrificamos bebês ou coisa assim! Seria muito mais fácil encontrar quem faz esse tipo de coisa em outras religiões mundialmente estabelecidas - protestou ele.
- Certo, pai, mas estas religiões mundialmente estabelecidas possuem porta-vozes que as defendem. Se o senhor, que fundou a igreja, não se levanta para defender seus pontos de vista, quem o fará?
Breve hesitação da parte dele. Finalmente, sugeriu:
- Que tal você, filha?
- Eu?!
- Você - insistiu ele calmamente. - Abaixo de mim, a Grande Sacerdotisa é a pessoa mais indicada para falar no que realmente consiste a Igreja de Satã. Ir pelo mundo, e divulgar nossos ensinamentos.
Foi a vez dela ficar em silêncio. Não era uma decisão fácil. Teria que, quase literalmente, dar a cara à tapa; o satanismo não era exatamente algo bem-vindo no seio das grandes religiões.
- O senhor me quer como sua porta-voz, pai? - Indagou.
- Minha não - corrigiu ele. - Porta-voz de Satã.
- Bem... talvez por um ano... até as coisas se acalmarem - avaliou ela cautelosamente.
- Salve, Satã! - Exclamou o pai, triunfante.
- Salve, Satã! - Repetiu ela, muito mais por força do hábito do que de crença.
- [30-10-2019]