CAPITULO I – Um Trágico Fim de Noite
 
                São dez horas da manhã de uma primaveril sexta feira, o telefone toca na sala 211, no segundo andar do velho prédio da Avenida Estados Unidos, onde funciona o Departamento de Arrecadação Federal no bairro do comércio da velha cidade do Salvador.
        O bairro do comércio vem dos primórdios da cidade do Salvador, nele se encontram o porto de Salvador, repartições públicas, muitas lojas comerciais e muitos bancos, a tempos atrás, antes dos estabelecimentos dos Shoppings Centers, foi o coração financeiro e comercial da cidade.
        De fato, olhado de cima, da cidade alta, não é bonito o bairro do comércio, os velhos e belos edifícios coloniais deram lugar a prédios horríveis, fruto do péssimo gosto arquitetônico da elite baiana, mais parecem uma caixa de sapatos em posição vertical. Uns espantalhos.
        A vista é compensada pela visão da Baia de Todos os Santos, do forte de São Marcelo e um ou outro prédio elegante.
       Arnaldo atendeu o telefone e dava para se perceber a desenvoltura e contentamento com que falava com a interlocutora.
        Do outro lado da linha estava Beatriz, Fiscal de Arrecadação Federal que trabalhava na Delegacia de Camaçari, na Bahia.
       Beatriz ligara para falar com algum colega que pudesse lhe tirar uma dúvida de trabalho, estava levando a cabo uma fiscalização em uma grande empresa do polo petroquímico de Camaçari e necessitava conversar com algum colega que já houvesse estudado o assunto em que estava insegura.
       Arnaldo logo se dispôs a tirar a dúvida de Beatriz e, com a ajuda do supervisor chegou a coloca-la relativamente segura do assunto.
        Logo teceu vários elogios à colega e prometeu recolher material sobre o assunto e entregar para ela.
       - Que tal um chopinho no final da tarde. Perguntou Arnaldo e complementou.
        - Eu te entrego todo o material, temos muita coisa sobre esse assunto, e podemos discutir mais um pouco.
        - Não, deixemos para outro dia, tenho que voltar para Camaçari hoje, eu não moro aqui em Salvador, como todos de lá.
        Mas a insistência de Arnaldo foi tanta, prometeu até que levaria com ele o supervisor do grupo com quem ela havia falado ao telefone, que Beatriz consentiu em ir ao happy hour.
        A promessa de levar o supervisor animou muito a Beatriz, ela havia gostado muito da voz dele, uma voz grossa e sensual, parecia um locutor de rádio. Beatriz acabou até por ficar feliz, gostaria de conhecer esse carinha. Dormiria na casa da tia, como sempre fazia ao vir em Salvador.
        Arnaldo não cabia dentro de si de alegria, iria sair com a Beatriz, levaria o supervisor porra nenhuma, inventaria uma mentira qualquer, diria que a mulher dele não permitiu que ele fosse ao happy.
        Compraria uma camisa nova, pensou Arnaldo, colocaria um perfume bem masculino, forte, ela não iria resistir. Pedacinho de mal caminho, rostinho oval, lindo, olhos vivos e claros, lábios carnudos e mais aquele lindo sinal, no lado esquerdo do rosto, próximo ao queixo.   
        Passaria toda a noite ouvindo aquela voz doce e meio rouca, talvez ela não se lembrasse dele, - Pensou - mas ele se lembrava muito bem dela, teriam participado te uma assembleia do sindicato e ela sentou-se bem à sua frente.
       De fato, Beatriz não lograva ser uma mulher bonita na acepção da palavra, porém, seu belo patrimônio físico, aliado à sua inquestionável simpatia e aquele charme feminino no trato com os homens, sua voz meiga e rouca ao telefone, seu olhar inquisidor nos olhos masculinos, faziam dela a queridinha do sexo masculino e até de algumas bichas que nela procuravam inspiração.
        O relacionamento de Beatriz com as mulheres era bom, mas, evidentemente, não tão próximo como com os homens. Ela mesma confessara aos mais íntimos, gosto mais da amizade dos homens, é mais sincera, além de que homem é um bicho muito gostoso.
        Arnaldo passou em uma loja e comprou uma bonita camisa, quadriculada, com dois bolsos, como sempre foi do seu gosto, e partiu para casa, um banho rápido, colocou seu perfume polo, vestiu a camisa e saiu, disse a Ranilda, sua esposa, que iria para um jantar de negócios.
        No caminho, passou em uma farmácia e comprou um envelope com quatro ENGOV, não sabia das potencialidades alcoólicas de Beatriz, talvez tivesse que beber muito para derrubá-la, e assim estaria protegido. Comprou também rosas vermelhas. Pensou: toda mulher gosta de rosas.
        Haviam marcado de se encontrar no restaurante e bar BARRAVENTO, situado no bairro da barra, foi a condição imposta por Beatriz, porque o restaurante ficava pertinho, quase em frente ao apartamento de sua tia, aonde estava hospedada.
        Poucos minutos após haver chegado às 18:30 horas, Beatriz chegou, como sempre, estava muito sedutora, vestia calça jeans azul e uma blusa branca. A blusa um tanto folgada permitia que se vislumbrasse uma mostra dos seios sedutoramente descobertos e o umbigo, feito à mão.
     Arnaldo entregou-lhe as rosas e beijou-lhe no rosto. Beatriz corou, não esperava aquela recepção tão amável, afinal, para ela, era um encontro de trabalho.
Antes que Beatriz pudesse lhe questionar, Arnaldo logo antecipou que Thomas não podera vir, não conseguira da mulher o vale night, forma carinhosa com que apelidaram a permissão das esposas para se reunirem a beber após o expediente das sextas feiras.
Beatriz mal conteve o desapontamento e pensou.
- Quer dizer que “o linda voz” é casado... Que pena, deveria ser bonito. Mas tudo bem.
- Trouxe o material sobre a reserva oculta da correção monetária do balanço. Indagou Beatriz.
- Trouxe sim. Respondeu Arnaldo.
- Aqui estão as apostilas. São todas de um curso que fizemos a pouco tempo atrás, este ano ainda.
Beatriz tomou do material e começou a compulsar. A apostila falava de variados assuntos do imposto de renda das pessoas jurídicas, falava de despesas dedutíveis, de omissão de receitas, de saldo credor de caixa, também falava de correção monetária do balanço, mas da forma simplória que todos já conheciam, seu interesse estava mais além, em interpretações surgidas que se dizia prejudicar o contribuinte se não observadas.
- Porcaria, Beatriz balbuciou para si mesma.
Enquanto Beatriz examinava o material Arnaldo solicitou que o garçom trouxesse uma garrafa de vinho tinto seco e o cardápio.
A mesa em que estavam era bastante agradável, debruçada para o mar, guarnecida do vento da tardinha, início de noite, por um toldo plastificado, mas bem fresco o local, onde se podia apreciar a passagem de navios de turismo que a este momento do ano começam a frequentar o litoral brasileiro, vindos da Europa.
Quando o vinho chegou, Beatriz se fez espantada e questionou.
- Quem lhe disse que eu gosto de vinho?
Arnaldo gaguejou. Mas logo Beatriz deu um sorriso de complacência e comandou.
- Peça uma água mineral por favor, o vinho desidrata muito pelo alto teor de álcool.
 De fato, concluiu Beatriz para si mesma, esse Arnaldo não era aquele profissional que Beatriz esperava. Talvez de tanto o mesmo elogiar-se, passou para ela essa certeza de que era ele um profissional competente. Na verdade, ele era um auditorzinho de despesas, que apenas procurava nos livros contábeis aquelas pequenas despesas que segundo a legislação do imposto não poderiam ser dedutíveis da base de cálculo do imposto.
Mas fazer o que, pensou ela, a vida é cheia de decepções, de ilusões e não valeria nada ficar zangada, curtiria seu happy houar em paz. E o supervisor, melhor com ele, o Thomas, bem que poderia ter vindo, como seria ele? Casado!!! Nem pensar, Deus me defenda.
Pediram camarão de moqueca para comer e logo outra garrafa de vinho tinto foi aberta para a alegria de Arnaldo, e de Beatriz também que já se divertia descontraída.
Ao final do jantar Arnaldo já tentava acariciar, levemente, as mãos de Beatriz, e esta, por vezes permitia às vezes não, o que não dava a Arnaldo a certeza de estar sendo aceito.
- O álcool ainda não havia sortido efeito em Beatriz, pensou Arnaldo.
Pediu outra garrafa de vinho, do mesmo anterior, desta vez sob os protestos de Beatriz.
No que Arnaldo retrucou com provérbios populares sobre o vinho.
- "Afoga-se mais gente em vinho do que em água"
” Não critiques o homem e nem o vinho, sem antes prová-los de noite e pela manhã”.
De fato, após três garrafas de vinho Beatriz ficou bastante alegre e suscetível a curtir uma boa noitada, já olhava Arnaldo com bons olhos a esta altura dos acontecimentos.
Olhando-o bem, - pensou Beatriz – ele é bonito sim, deve medir 1,80 m e pesar uns 80 quilos. Moreno de olhos verdes, a que se deve? Cabelos lisos e pretos penteados para trás. Podia ter um nariz menor, algo arabesco, quanta mistura meu Deus, lábios carnudos, se ele me der um beijo eu deixo, mas só um selinho, que não se atreva a mais.
Nesse devaneio, apreciando as ondas a quebrar na praia, sentiu a mão macia de Arnaldo tomar levemente da sua e em seguida colocar a outra por cima.
A quanto tempo não tinha um contato carinhoso com um homem, bem um ano, concluiu.
Foi interrompida pela voz de Arnaldo a lhe propor ir para um local aonde pudessem dançar.
- Aonde seria este lugar, indagou Beatriz.
- Há um restaurante e bar na praia de patamares, explicou Arnaldo, - O Veleiro, tem uma boa música e os frequentastes são pessoas de classe, a meganha não frequenta, seleção feita pelos preços dos pratos e das bebidas, bem como do couvert artístico.
- Que bom, podemos ir, mas não devo voltar tarde, estou na casa de minha tia, pessoa maravilhosa, não devo decepcioná-la.
- Sim, sim, dançaremos um pouco, tipo uma hora por lá depois lhe levo para a casa de sua tia.
Já levantaram de mãos dadas.
Sentaram-se no Veleiro e logo Arnaldo pediu uma cerveja bem gelada, Beatriz já está quase no ponto, - pensou.
As estas alturas já estavam bem à vontade, beijinhos nos lábios e outras carícias típicas de um início de relacionamento.

            Na metade da cerveja Arnaldo sentiu que não estava muito bem, a cerveja não descera bem, logo providenciou tomar o ENGOV que havia comprado. – Providencial! – Pensou.  
Aproveitou uma saída de Beatriz à toalete e, distraidamente, abriu o envelope e engoliu logo dois comprimidos, teria que ficar bem, uma oportunidade dessas não aparece todos os dias.
A noite estava divertidíssima, um vento agradável circulava constantemente pelo local. Astral maravilhoso. Dançaram soltos e de preferência agarrados.
Por volta das três horas Beatriz o convidou para irem embora, Arnaldo contestou que estava cedo, porém logo cedeu ao pedido. Poderiam ir para o carro e convencê-la a ir para um motel, quem sabe toparia. – Tudo se com carinho se resolve – Pensou feliz.
Insinuações neste sentido foram lançadas, inclusive com a citação, outra vez, do provérbio sobre o vinho: ” Não critiques o homem e nem o vinho, sem antes prová-los de noite e pela manhã”.
 Mas Beatriz sempre o lembrando da necessidade de ir para casa, teria que estar bem para conviver com a família no dia seguinte. - Quem sabe outro dia? Esquivou-se sutilmente com a falsa promessa.
Ao ouvir tão bela promessa Arnaldo achou que ainda tinha chances naquele mesmo dia, poderia convencê-la.
Sem nada combinar dirigiu-se para um motel nas proximidades, entrou sob as veementes reclamações da parceira que de fato já estava bastante irritada e ameaçava saltar do carro e retornar para casa sozinha.
Foi aí que a noite que tinha tudo para ser totalmente bela tornou-se uma grande tragédia. João Soriano começou a sentir dores abdominais, uma vontade incrível de defecar, prendia, melhorava um pouco e logo em seguida vinha novamente a dor com maior intensidade, maior pressão, suava frio, já estava arrependido, mas não podia sair, havia dois carros em sua frente aguardando vagar um apartamento no motel.

            Beatriz não sabia o que fazer, entre irritada, constrangida e agora penalizada com a situação de Soriano.
Logo saiu o primeiro carro e cerca de dez minutos depois o segundo.
Mas já era tarde, não deu para esperar sua vez, a dor de barriga veio agora com toda a força e definitivamente o nosso conquistador foi atropelado, por uma enxurrada de merda tripas abaixo. Em outras palavras, cagou-se todo.
O fedor de merda misturado com o cheiro, ainda vivo, do perfume POLO, causava um terrível mal-estar para ele próprio, que completamente envergonhado implorou a Beatriz que pegasse um taxi para ir para casa, ele não teria condições física nem psicológicas para leva-la. Tinha vontade de morrer.
 - Que papelão. Pensou.
Beatriz totalmente constrangida foi ajudada pela portaria do motel que providenciou um taxi rapidinho, e nosso herói foi-se desolado para casa.
           Em lá chegando, aproveitou que todos estavam dormindo, foi ao banheiro e fez a devida limpeza que merece casos como este. Apenas a camisa ainda prestava para vestir, o resto enrolaria para jogar no lixo imediatamente, ninguém poderia ter conhecimento deste fato.
           Foi aí que revistando o bolso da bela camisa encontrou ainda dois restantes comprimidos de ENGOV, olhou atentamente para o envelope e não acreditou, não era ENGOV e sim LACTOPURGA.

Miserável a balconista da farmácia, ainda lhe pagaria com juros e correção monetária.
Luís Lisbello
Enviado por Luís Lisbello em 16/10/2019
Código do texto: T6771096
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