CONTATOS IMPERFEITOS

Na rua, os resquícios da chuva que caíra durante toda a tarde. A enxurrada trouxera detritos dos terrenos rua acima, deixando uma sujeira de barro, pedras e capim sobre o asfalto ainda molhado. Agora, uma leve garoa caía, deixando o ar fresco e úmido neste cair de tarde de janeiro. No céu, um arco íris teimava em aparecer entre as nuvens, cinzentas ainda.

Débora descia a rua caminhando pela calçada, desviando das poças d’água.

“Droga de cidade”, pensava, “só tem buraco nessas calçadas.”

Ela vinha da casa de sua madrinha, onde pelo menos uma vez por semana passava a tarde, fazendo companhia e ouvindo as histórias que a idosa senhora gostava de contar. Segundo Dindinha, eram histórias verdadeiras, que atiçavam a imaginação e a fantasia da menina de treze anos.

Descendo a rua, Débora pensava na história que tinha ouvido esta tarde. Ela conhecia a prima Dorotéia, hoje com uns oitenta anos de idade e que morava com uma irmã numa casa enorme perto da estação. As duas eram solteiras, e nas poucas vezes que havia conversado com elas, Débora tinha a impressão de serem pessoas intransigentes e desagradáveis, que gostavam de implicar com as pessoas. Nunca poderia imaginar que aquelas duas solteironas sisudas pudessem ter vivido uma história tão interessante em plenos anos trinta. Era difícil imaginar até mesmo que elas pudessem um dia ter sido jovens.

Dorotéia e Ruthinéia estudavam no colégio de freiras, em regime de externato. Eram excelentes alunas, e estavam cursando o ginasial, Dorotéia na terceira e Ruthinéia na quarta série. Ambas gostavam de estudar Francês, matéria ministrada pela rigorosa Soeur Francine du Sacré Coeur de Marie, e já falavam o idioma com relativa fluência.

Naquela tarde elas iam caminhando para casa, conversando em Francês, quando passaram em frente a uma casa onde havia um homem à janela. Ele ouviu a conversa das duas e ficou fascinado.

Era um homem jovem de uns vinte e cinco anos, e não havia sido notado pelas duas irmãs, tão embevecidas estavam em sua tagarelice. Elas conversavam e riam, e o homem não se conteve. Saiu da janela e correu até a rua, passando a seguir as duas adolescentes a uma distância prudente mas que permitia ouvir o que elas diziam, sem no entanto compreender nenhuma palavra.

Reginaldo era um homem rico porém rude, que nunca havia estudado além do curso primário, e cujo maior interesse na vida era trabalhar na loja de ferragens de seu pai, que também entendia que estudar era para almofadinhas, e que o importante da vida era saber ganhar e guardar dinheiro. Reginaldo tinha uma irmã, Gertrudes, também sem estudos, já que na concepção de seu pai mulher não tinha que estudar, mas ser criada para servir o marido e ter filhos. O importante era saber cozinhar, costurar e fazer sabão.

O rapaz seguiu as duas irmãs até o portão de sua casa. Viu quando elas entraram, e ainda ficou um bom tempo parado na calçada, pensando no que tinha visto e ouvido, fascinado principalmente com olhos azuis da mais novinha, que além disso tinha um sorriso lindo como ele jamais havia visto na vida. E aquela língua que elas falavam, o que era aquilo? Que som diferente... E o que estariam elas falando?

Estava ali, parado, quando saiu da casa uma moça carregando um latão de leite. Tomou coragem e se aproximou da moça.

- Desculpe, moça, mas poderia me dizer quem mora nesta casa?

- E por que o senhor quer saber? – perguntou desconfiada a empregada Maria.

- É que... Bem, é que vi entrar aqui duas mocinhas conversando de uma maneira esquisita e...

- Ah- riu a moça – são as duas filhas do Sr. Frederico... Elas têm mania de conversar em Francês...

- Francês?

- É... é uma língua enrolada que elas aprenderam no colégio...

- Elas só conversam assim?

- Não, claro que não... Só quando elas estão sozinhas, ou quando não querem que a gente entenda o que elas estão falando.

Dorotéia e Ruthinéia eram filhas de um importante maestro, e em sua casa sempre havia uns saraus onde se reuniam os intelectuais e os artistas da cidade.

Reginaldo ficara amigo de Maria e esta o mantinha avisado de tudo o que se passava na casa do patrão no que dizia respeito a Dorotéia e Ruhinéia. Naquele sábado ia haver um sarau onde o maestro pretendia receber uns amigos músicos vindos do Rio de Janeiro. Maria avisou Reginaldo e sugeriu que ele aparecesse na casa do patrão à noite. Não haveria problema para entrar, pois essas reuniões eram de certo modo abertas, e só apareciam mesmo as pessoas interessadas em boa música e poesia.

Reginaldo pôs o seu melhor terno, e nervoso, chegou pontualmente às sete horas na casa do maestro Frederico. Apresentou-se a ele, que estava na porta recebendo os convidados como filho do Sr. Manuel ferreiro, que soubera do sarau por meio de Maria, que havia ido à loja na semana anterior e comentado sobre os saraus. Foi bem recebido pelo dono da casa, e tratou logo de ficar sentado em um canto, observando. Estavam presentes várias pessoas que não conhecia e também alguns conhecidos. As filhas do maestro estavam sentadas juntas num sofá, tagarelando com umas amigas. Sua mãe circulava pela sala, servindo canapés, enquanto Maria servia licores. Um moço de libré servia vinho em taças de cristal.

Os músicos começaram a tocar. Era um quinteto de cordas, composto de dois violinos, um contrabaixo, uma viola e um violoncelo. Depois de quatro músicas instrumentais, o maestro pediu a palavra e chamou sua filha Dorotéia para cantar uma canção. A moça, timidamente, levantou-se do sofá e aproximou-se do quarteto. O coração de Reginaldo disparou. A menina começou a cantar. Sua voz suave, de soprano, encheu o salão, e um profundo silêncio se fez. Parecia um anjo cantando:

Plasir d’amour

Ne dure qu’un moment

Chagrin d’amour

Dure toute la vie

Tu m’as quitté

Pour la belle Sylvie

Elle te quitte et prends

Un autre amant

Tant que cette eau

Coulera doucement

Vers ce ruisseau

Qui borde la plaire

Je t’aimerai

Te répétait Sylvie

L’eau coule encore

Elle a change pourtant…

Quando Dorotéia terminou de cantar, fez-se um momento de silêncio.Era como se as pessoas precisassem recuperar o fôlego, suspenso pela beleza que acabavam de presenciar, e depois a emoção explodiu nos aplausos, que duraram alguns minutos. Reginaldo, como várias pessoas presentes, não conseguiu segurar o choro, e tentava disfarçar as lágrimas que teimavam em escorrer pelas suas faces.

Passado esse momento de intensa emoção, os músicos começaram a tocar uma peça mais animada, e o ambiente se descontraiu.

Reginaldo demorou para recobrar o controle, e agora, pensativamente sorvia uma taça de vinho.

Na manhã seguinte, após uma noite insone, Reginaldo não se concentrava no trabalho. Só pensava no que havia visto e ouvido, e mal conseguiu esperar o horário do almoço, quando correu à janela para ver a passagem das duas adolescentes.

A partir desse dia tornou-se rotina na vida de Reginaldo almoçar mais cedo e debruçar-se à janela para ver passar as duas irmãs. Se elas o notavam, não davam demonstração. Passavam alegres, tagarelando, às vezes em Português, às vezes em Francês. Quando elas falavam em Francês, o rapaz delirava de um prazer inexplicável, e sempre as seguia até a casa.

Maria havia prometido a Reginaldo que quando houvesse outro sarau ele seria avisado.

E ele se tornou freqüentador assíduo dos saraus do maestro Frederico, já sendo recebido como amigo pelo dono da casa. As jovens não demonstravam notar aquele rapaz mais velho que elas, que sempre ficava quieto em um canto, ouvindo, prestando muita atenção nas músicas que eram executadas. Ficavam em seu sofá, tagarelando no intervalo das apresentações, sempre rodeadas das amigas da mesma idade. Dorotéia quase sempre cantava, e seu repertório variava entre canções francesas e modinhas brasileiras. Ruthinéia era mais quieta, e quase nunca se ouvia a sua voz na tagarelice das meninas. Ficava quase sempre pensativa, parecendo sonhar acordada. Um dia, enquanto Dorotéia cantava, ela notou Reginaldo. Olhou fascinada para aquele rapaz, que ouvia embevecido a canção.

Quando Dorotéia terminou de cantar, Ruthinéia aproximou-se de Reginaldo com uma taça de vinho na mão.

- O senhor aceita vinho?

- Ah, sim, obrigado, embaraçou-se Reginaldo.

- O senhor tem vindo sempre aqui?

- É, de vez em quando...

- Gosta de música?

- Sim, muito... Principalmente essas que a sua irmã canta.

- É ... ela está com um repertório muito bonito...

Ficaram sentados lado a lado, Reginaldo sem saber o que dizer, Ruthinéia impressionada com aquele rapaz aparentemente tão sensível. Terminado o sarau, despediram-se. Ruthinéia teve vontade de convidá-lo para voltar, mas teve vergonha. Ele teve vontade dizer a ela que havia sido um prazer estar ao lado dela aquela noite, mas não teve coragem.

No dia seguinte, ao passar pela janela de Reginaldo, Ruthinéia o reconheceu. Não disse nada, apenas ficou olhando enquanto passava, enquanto o rapaz, com a garganta seca, também não tirava os olhos dela.

Ruthinéia nada contou à irmã.

Maria disse a Reginaldo que haveria sarau no próximo sábado.

Depois de um mês trocando olhares diariamente com Ruthinéia, Reginaldo iria encontrar-se com ela outra vez, e mal podia esperar. Quando passou pela janela , Ruthinéia deixou um bilhete na soleira:

“Amanhã haverá sarau. Espero encontrá-lo lá. Ruthinéia.”

Ruthinéia estava muito bonita, com um vestido azul, e Dorotéia, como sempre usava cor de rosa. Reginaldo sentou-se no lugar de costume, não tirando os olhos do sofá onde se reuniam as mocinhas. Quando Dorotéia começou a cantar, Ruthinéia aproximou-se dele devagarinho, ficando parada junto a sua cadeira. Colocou a mão sobre o seu ombro, e quando sua irmã terminou o canto, aplaudiu junto com os demais, e baixou os olhos para o emocionado rapaz. Quando os músicos recomeçaram o tocar, Dorotéia foi sentar-se no seu lugar, continuando a conversa com as amigas, e Ruthinéia, tocando o ombro de Reginaldo novamente, disse:

- Vamos ali fora. Vou mostrar-lhe nosso jardim.

Saíram juntos e foram sentar-se num banco que havia no jardim. Conversaram bastante tempo, sobre suas vidas, e perceberam que tinham muito em comum. Reginaldo era um rapaz calado, e Ruthinéia não era de conversar muito, ainda que fosse menos tímida que ele. Os dez anos de diferença entre suas idades não parecia importar, pois a jovem demonstrava um amadurecimento raro entre as meninas de sua idade e geração.

Conversaram durante muito tempo, descobrindo afinidades até então desconhecidas de ambos, e nem perceberam a chegada de Dorotéia, que parou atrás deles e ficou ouvindo a conversa. No alto de uma árvore, piou uma coruja. Reginaldo tocou com a ponta dos dedos a mão de Ruthinéia, que enrubesceu e em seguida, agarrando as mãos do rapaz, beijou-o arrebatamente nos lábios. Neste momento, Dorotéia, que tudo observava, começou a cantar. No céu, a lua saiu detrás de uma nuvem. No peito de Reginaldo, disparou o coração.

Beijaram-se longamente enquanto durou a canção. Ao terminar de cantar, Dorotéia pegou uma grande pedra no chão e repetidamente golpeou a cabeça de Reginaldo, que caiu inerte no solo, enquanto Ruthinéia rasgava suas roupas.

Depois, falando em Francês, as duas entraram na casa de mãos dadas, atravessando o salão, Ruthinéia com as roupas rasgadas e Dorotéia com a pedra ensangüentada na mão.

As irmãs passaram vários anos no manicômio, e agora viviam sozinhas na enorme casa que fora de seus pais, imersas em recordações e fantasias. Nunca mais tocaram no nome de Reginaldo.