Os Três Tempos da Fantasia

1

Noite luminosa. Megalópole inspirando e expirando. Minhas pernas obedecendo meramente ao hábito. Todo o meu corpo um receptáculo passivo e transbordante de impressões. Numa palavra: cansado.

Uma aglomeração a frente. Um jogo de truques, um acidente? Aproximo-me e as pessoas logo se dispersam e seguem seu caminho. Estou cheirando mal? Paranoia, paranoia. Há uma movimentação tediosa que por certo entediara a todos: homens e mulheres com caixotes e instrumentos para lá e para cá; um grupo de jovens meio à parte que só observa, entre eles um gorducho com uma barbicha ruiva atrás de uma compacta bateria. Outros curiosos se juntam a este curioso e observo que também há homens portando câmeras filmando tudo.

Vai ter um show, uma voz pergunta a quem por ventura se dignar a responder. Não conheço esses caras, diz outro, a boca de lado, olhos a frente captando tudo. Logo eu também me entedio, e o esforço de dar às pernas o ritmo abandonado há pouco me leva a considerar a possibilidade de um cafezinho logo ali.

Da padaria aconchegante, no círculo fechado do seu pequeno cosmos que se ocupa de conversas breves entre seus familiares fregueses e os atendentes e o telejornal monótono na pequena TV, continuo a observar o grupo insólito no meio da avenida na sua movimentação agitada e silenciosa.

Distraído, fantasiando acordado, hipnotizado pelo vapor espiralado do café quente, sou trazido de volta por uma música. Eram eles. A banda de que ninguém ouvira falar. No meio da avenida. Homens com câmeras quase discretos, as luzes dos carros refletindo nas laterais negras dos enormes e famintos aparelhos. A música era nova e atraente. Era como ouvir Radiohead e Massive Attack pela primeira vez. Em que década estávamos? Há padarias e homens indo para casa, cansados do trabalho, então pouco importa. Mas lá estava a música, tornara-se eixo gravitacional. O trânsito não parou, mas tornou-se mais lento. Os homens e as mulheres não deixaram de ir para casa, mas fizeram um pequeno hiato, e eu, eu voltei para lá.

2

Toda a noite a mesma coisa, disse meu pai, as mãos agarradas ao volante, os nós dos dedos brancos de tensão. Houve um acidente, perguntou minha mãe. Um jogo de truques, provavelmente, retrucou ele distraído. Eu gosto das viagens de carro à noite, as vozes quase incorpóreas dentro dele onde tudo é carro apesar do condutor e dos passageiros. Gosto de observar as ruas pela janela, enquanto ouço as vozes, de acompanhar as ruas à noite, as cores e os contrastes mais vivos, as luzes mais criativas.

Há um grupo tocando, observou minha mãe. Meu pai revezava o manejo do volante com o celular e não a ouviu. Música como eu nunca ouvira. Havia muita gente lá, observando. Carros paravam, ou faziam retornos para consumir o espetáculo ao vivo. Queria que meu pai parasse, abdicasse de sua rígida agenda, e que fizéssemos o mesmo, mas ainda sou criança, as ideias morrem na garganta inarticuladas, só me resta a ansiedade e os desejos que, ao não se realizarem, me fazem evoluir dolorosamente, sem que disso eu me aperceba.

Seguimos, mas eu, eu não teria tempo de evoluir. Fomos atacados à porta de casa. Subimos as escadas escoltados, aos empurrões e ameaças. Alguma coisa aconteceu, uma reação por parte do meu pai, não lembro. Lembro apenas que a música ficou para trás.

3

Sigmund Freud disse que o devaneio se forma a partir de três tempos, três impressões temporais: uma impressão atual que serve de gatilho e, por sua vez, se conecta a uma lembrança infantil onde um desejo que fora realizado na época gera agora uma imagem mental onde um desejo relativo ao futuro se realiza: a chamada fantasia ou devaneio. Três tempos: passado, presente e futuro,

Entrelaçados pelo fio de desejo que os une.

Minha impressão recente foi uma música do Muse. Enquanto a ouvia me imaginei como o seu cantor. Imaginei que eu era o vocalista de uma banda desconhecida que lançaria seu primeiro álbum inédito no meio de uma avenida movimentada à noite. Tudo seria filmado, a um só tempo show ao vivo e clip. As impressões dos transeuntes capturadas ao ouvir a música pela primeira vez. O desejo de ser um astro da música, de parar o trânsito.

Isso me remeteu a várias lembranças infantis, onde por diversas vezes observei coisas interessantes na rua, da janela do carro dos meus pais e parentes. Nunca parávamos para observar essas coisas interessantes. Desejos fugazes e frustrados. O que é o contrário das lembranças a que Freud se refere, onde os desejos foram satisfeitos. Provavelmente estes são inconscientes. As lembranças a que me refiro vieram com facilidade, no meio do devaneio, conjugando-se a ele, e eram frustrações infantis.

Na minha fantasia eu sou o vocalista. No meu conto, o observador e a criança. Isso se dá porque não consigo me imaginar como algo que não sou, ao menos deliberadamente.

4

Toda a noite a mesma coisa, disse meu pai, as mãos agarradas ao volante, os nós dos dedos brancos de tensão. Houve um acidente, perguntou minha mãe. Um jogo de truques, provavelmente...

Em outro universo, minha mãe, do seu lado direito, veria o sobrinho do meu pai, saindo de uma padaria, em direção ao espetáculo amador. Meu pai levantaria os olhos do celular e contornaria nossa rígida agenda. Eu, agitado de excitação na noite fria, de mãos dadas com minha mãe, no seu ritmo apressado para acompanhar o pai que se desloca sem desvios em direção a seu sobrinho, testemunharia a música nova nos ombros cansados deste, e teria tempo de evoluir agora, nem tão dolorosamente, devido ao feliz acaso de um insuspeitado atraso.

Outro desejo realizado. Ao menos em fantasia.