A Cozinha

Mil anos depois dos Grandes Fogos Atômicos, uma equipe de arqueólogos encontrou uma caixa selada nas ruínas de um museu da antiga Nova Iorque. Acreditava-se que a caixa era uma cápsula do tempo, destinada a preservar objetos e recordações do passado remoto para as gerações futuras. E, dentro da caixa, os arqueólogos encontraram um rolo de filme sonoro, em preto e branco, perfeitamente preservado. Junto ao rolo, um cartão datilografado onde se lia "Kitchen (1965), por Andy Warhol".

- Deve ser um registro histórico importante - determinou o chefe da expedição arqueológica, antes de enviar o rolo para ser restaurado e copiado.

No laboratório encarregado da recuperação do filme, os técnicos que primeiro o viram e ouviram não tiveram dúvidas de que estavam diante de algo muito especial.

- Vejam só... a ação transcorre por inteiro num único cenário, essa cozinha citada no título do filme - avaliou o chefe dos técnicos.

O espaço, além de pequeno e preenchido por uma geladeira, pia, fogão e uma mesa em primeiro plano, registrava ainda a presença de seis atores perambulando diante de uma câmera fixa. Uma das duas mulheres, uma loura chamada Jo, espirrava o tempo todo, parecendo padecer de um terrível resfriado. Lá pelas tantas, um mixer foi ligado e tornou-se impossível ouvir os diálogos (embora estes não fossem particularmente empolgantes).

- Se isto é um registro fidedigno da vida cotidiana em meados do século XX, - observou o chefe dos técnicos, testa franzida - já sabemos porque aquela civilização acabou. É difícil crer que algum ser humano, em condições psicológicas normais, suportaria uma existência tão estúpida e vazia quanto a demonstrada por estas personagens nessa cozinha atravancada.

- Uma vida assim, explica muitas coisas - fez coro uma técnica. - Até mesmo a poluição dos rios ou a tal Guerra do Vietnã, que parecer ter sido tão importante nesse período.

- Eu mesmo preferiria ir para a guerra do que ter que suportar tamanho horror - impressionou-se outro técnico.

Posteriormente, uma comissão de avaliação do patrimônio histórico, emitiu uma nota onde sugeria que Andy Warhol, o diretor do filme, deveria ter sido um notório dissidente político. A sua obra sobre a cozinha cheia de gente sem perspectivas, foi considerada um documento de denúncia das condições abjetas de vida, nas grandes cidades norte-americanas daquele período; daí a razão de ter sido preservada numa cápsula do tempo.

- A coragem de Andy Warhol, - declarou o arqueólogo responsável pela descoberta - permitiu que tivéssemos um raro vislumbre sobre o cotidiano de nossos antepassados, e a entender melhor suas motivações e seu desespero.

Sem sombra de dúvida, todos os que tiveram o desprazer de assistir "Kitchen", concordaram integralmente com ele.

- [21-08-2019]