SEM MAR NEM "CANGALHA"

SEM MAR NEM "CANGALHA"

"Eu vou pra Maracangalha, eu vou... /

(...) se a Anália não quiser ir / eu vou

só, / eu vou só mas eu vou" !

DORIVAL CAIMMY (trechos, anos 50)

O Destino fôra bom com Gumercindo Magalhães dos Santos Silva e Silva, mas também é verdade que êle batalhara desde menino para obter o sucesso que ostentava, bela casa assobradada no Pelourinho, carro com "chauffer" e um nível de vida de "novo rico". O tempo das "vacas (e cabras) magras" ficara no distante Passado lá no Agreste, lata d'água na cabeça e um viver só de penúria e sacrifícios. Abandonara o sertão aos 15, 16 anos e findara na cidade grande, a velha Salvador trissecular, onde arrumou ocupação de caixeiro num importante mercadinho de secos & molhados ou, traduzindo, balconista em armazém, mercearia. O dono simpatizou com o molecote de boa estampa, sério e responsável e decidiu promovê-lo a ajudante de almoxarife, cuidando dos estoques de toda loja e providenciando as mercadorias em falta.

Vez ou outra o levava a sua mansão para pequenos serviços e lavagem do carro Oldsmobile, um luxo de poucos na época. "Gugu" não ousava olhar para a filha única do patrão, ambos com quase a mesma idade, mas o Destino -- que adora "tretas" -- mais adiante os uniria, para desgosto do pai-patrão. Gumercindo cresceu em tamanho e responsabilidades e, num belo dia, sagrou-se gerente geral, o dono já nem ía ao comércio, "Gugu" tomava todas as decisões necessárias e conduzia o negócio com êxito total. Quando o patrão-pai "acordou" a filha amada -- criada para o "high society" com todos os ademanes -- já se engraçara pelo ex-pastor de bodes e assemelhados e o pai, que fazia todas as vontades de Anália, dobrou-se a mais este capricho. A sociedade baiana riu à socapa, o sujeito nem sobrenome tinha e ganhava "de bandeja" uma dama rica e 3 outros nomes tradicionais da nobreza soteropolitana.

"Assim se passaram dez anos"... dizia o bolero e, nesse caso, foram 30 anos, êle sem vaidade alguma e ela cheia de todos os caprichos e veleidades femininas. Com os 3 filhos bem criados (2 já casados) lhes restavam na vida as fofocas e os gastos com vestidos e chapéus para ela e, para êle, o esporte bretão nos fins de semana -- era "centeraufo" de bom talento -- mais os páreos do Jockey Club, de casaca, cartola e bengala acastoada, pois eram os anos 50, o Brasil vivia ainda a "ressaca" do Maracanã anos antes. O fato é que os unia tão-somente a fortuna do pai e sogro -- que Gumercindo ampliara -- e o juramento da Igreja de seguirem juntos "até que a Morte os separe" ! Como êle nunca foi muito católico, não o preocupava a promessa feita no altar da Catedral. Por ironia do Destino, a avó materna de "Gugu" lhe deixara por herança (?!) um casebre na Maracangalha, longe de tudo, mas com vista para o mar. Decidiu conhecer o lugar na primeira oportunidade e esta veio com um feriadão numa quinta-feira... dispensou os empregados do agora supermercado "Mar e Terra" na sexta e sábado e preparou as malas para a tal visita. Madame Magalhães exigiu que o marido a levasse. Era um absurdo, insistiu êle, a estrada para lá era uma porcaria e nada haveria para fazer na tapera sem luz nem água encanada. Anália bateu pé... êle sabendo que a esposa não ía a lugar algum sem seu chapelão "ninho de cegonha" -- apelido que os amigos do "football" criaram, para seu desespero -- "dera um fim" no monstrengo e preparou-se para partir.

Ela desistiu, para sua alegria, sem seu chapéu se sentia seminua. Quando o "chauffer" dava a partida no automóvel "hipopótamo" ela surgiu na escadaria com 3 empregadas e 5 malas.

-- "Senhor meu marido, vou também... seja cavalheiro e me ceda seu "panamá", não é de bom tom senhora da sociedade viajar sem um chapéu" !

Gumercindo quase teve "um treco", porém concluíu que teria com quem conversar durante a longa viagem. Não tinha... pretendera ir ao lado do motorista, palreando sobre assuntos masculinos. Essa chance se fôra, empregados viviam num mundo à parte na época. Não imaginava o que pudesse conversar com a "dondoca" mimada da esposa, receitas de bolo, no mínimo. O chapéu de palha barato o incomodava, um homem na sua posição não podia usar aquela "porcaria" dos seus tempos de retirante. Com o carro lotado chegaram ao "bangalô" de noite, nem deu para preparar janta, cama, nada... dormiram no chão mesmo, os belos e caríssimos vestidos servindo de colchão. O "chofer" cochilou no carro e, na manhã seguinte, foi ao centro da cidadezinha comprar o necessário e carvão para o fogão a lenha, já que achas de madeira não havia. Passaram o feriado "a pão e água", a esposa lacrimosa a lamentar o destino dos seus lindos vestidos e tendo que "suportar" aquele chapéu horrendo com cheiro de charuto. Esquecera êle o rádio de pilha -- na pressa de sair -- e mal podia usar o do carro para não "arriar" a bateria e êles todos findaram presos naquele "fim de mundo". Maracangalha nunca mais !

Voltaram sexta de manhã famintos, sem banho, mal humorados e de "cara amarrada" um com o outro. Tardezinha, barba feita e banho tomado, Gumercindo lhe joga na cara a revelação terrível:

-- "Senhora dona Anália, de minha parte nosso casamento acaba aqui" !

-- "Senhor meu marido, no que me diz respeito já acabou faz tempo, o senhor é um grosso, sem modos nem estilo" !

O pai de Anália estremeceu, a sociedade em peso iria achincalhar com sua estirpe e sobrenome, todavia a filha era soberana nas decisões... e ela queria isso ! Passaram sábado e domingo em locais diferentes, êle assistindo ao tradicional BA X VI em seus primeiros dias, com a vitória do idolatrado Bahia FC e depois no Jockey Club, vendo o Derby mais famoso da época e apostando pesado num "azarão". Perdeu !

Já ela foi às lojas, gastou horrores e, no domingo, lá estava no mesmo Jockey, desacompanhada, um escândalo de encher páginas dos jornais da capital, contudo o novo chapéu "bonsai" fez o maior sucesso. Gumercindo saiu do "casório" sem 1 "tostão furado" (*1) mas livre como um passarinho, a cantar um tango famoso, o "Capricho Cigano":

"Não sei por que, tu és tão vaidosa,

cigana má, cruel e caprichosa.

Gostas de ver minh'alma envenenada,

o teu prazer é me fazer sofrer" !

Na sucursal do "Jornal do Commércio" surgiu um anúncio na primeira página: VENDO SÍTHIO - com vista para a praia, em Maracangalha, preço de occasião. Tratar pela Caixa Postal 34, no Correio Central".

"NATO" AZEVEDO (em 15/agosto 2019, 19 hs)

OBS: (*1) TOSTÃO FURADO - no Brasil dos 1800 e tantos a moeda era DESVALORIZADA carimbando-se no centro ou, pior, fazendo um "buraco" nela, para diminuir pela metade seu valor impresso.