O "PESTINHA"

ADENDO AO TEXTO - o comportamento desse garoto seria impossível nos anos 50/60 -- período retratado nessa estória -- porque éramos "castrados", silenciados, impedidos de qualquer manifestação, a não ser quando autorizados. Mas o conto é meu e o menino era mesmo uma "peste", daí...

O "PESTINHA"

Sizenando nascera um "Justin Bieber", loiro, de olhos azuis, as madeixas douradas caindo sobre a face, que êle corrigia com um leve meneio da cabecinha, gesto bem feminino. Solitário varão (epa!) entre 3 ou 4 tias, o pai sempre ausente, em viagens prolongadas por semanas, "Nandinho" adquiriu gestos e "tiques" que, hoje, seriam um "inferno" em sua jovem vida... contudo, naquela época ninguém se importava, não sei porquê. É claro que as tias "forçaram a mão", ter um sacerdote ou freira com o sobrenome da família era a glória do clã, motivo de perene inveja de meia cidade. E assim foi...

Findou num Seminário, dos vários que existiram e que os "tempos modernos" extinguiram, sentindo sempre falta dos gostosos chocolates com os quais cada tia comprava dele atenção e carinho, os olhos azuis mergulhando fundo nas carências das solteironas, caraminholas inconfessáveis nas cabeças ocas. As TVs mal tinham chegado a meia dúzia de lares em cada vilarejo e a diversão de moças e senhoras à tarde, entre cafezinhos, eram bordado e biscoitos, trocar receitas e falar mal de quase tudo, exceto padres. Foram-se os anos e Sizenando, bom aluno -- não tinha outro jeito, ESTUDAR era obrigação -- consagrou-se clérigo e foi ser pároco numa cidade distante, onde a bela estampa causou furor e trouxe ao átrio da igreja inúmeras jovens cheias de ilusões e desejos pecaminosos. Desvirtuar um padre era o Inferno na certa mas, por outro lado, seria o "diploma" de beleza superior, melhor entre as melhores. Assim, produziam ocasiões para assediar o jovem vigário com bolinho, biscoitos, lenços e guardanapos bordados com o esquisito nome -- que o padre recebia, agradecido -- todas sonhando em ter as próprias mãos entre as dele e, olhos nos olhos, declararem sem uma palavra o amor impossível que os uniria doravante. Mas, até lá, muita água teria que rolar sob a ponte pois não era à toa que, quando menino, o padre tivera um comportamento afeminado.

A convite dos fiéis Sizenando visitava famílias, os maridos mal barbeados e cheirando a fumo de rolo -- um pavor, como fediam -- "torcendo o nariz" e as caras àquela intromissão na paz conjugal. Era um alvoroço... a mulher toda "se soltava", dava seu grito de liberdade sexual e "paparicava" o sacerdote de forma indecente, para despeito dos esposos ignorados. Pareciam abelhas em torno de uma flor !

Numa dessas ocasiões o padre adentrou na casa de Arthurzinho, também filho único, mesmíssimamente mimado, "achocolatado" de igual forma... "Tuca", Tutuca", "Tutuquinha" nascera "peste", a cegonha o trouxera já com um carimbo desse teor. Mordera o dedo do médico que lhe dera palmadas na bunda ao nascer (e nem dentes tinha) e seguiu bagunçando tudo vida a fora até chegar àquele bendito dia.

Oh, aquele dia iria marcar o sacerdote pelo resto de sua existência... tudo ía às mil maravilhas, os "paparicos" de sempre, quando êle avistou sobre a cômoda a barra de chocolate. A cabeça anuviou-se, surgiu estranho zumbido nos ouvidos, nada mais entendia do que falavam, sentia-se numa cápsula espacial, os olhos grudados no tampo da mesa. Não, não era um ovinho de Páscoa ou um Batom, um Sonho de Valsa ou Diamante Negro, não era um bombom qualquer... era um GALAK, o rei dos chocolates da época, só comparável ao Laka, outro portento. "Aquilo" era dele, lhe pertencia por natureza, precisava pegá-lo !

"Rodeou" meia sala em pequenos passos, imperceptíveis, a mulherada atrás. Encostou no móvel e, discretamente, "embolsou" a jóia, a satisfação do feito a lhe transbordar a alma. Deu azar... o "pestinha" percebeu toda a manobra e, embora não tenha visto a "posse", sabia quem fôra o autor. No bolso de uma batina cabe um elefante africano e o crocodilo furibundo que sempre o acompanha, daí ninguém notar o volume da barra de um palmo. O menino puxa a barra da saia de uma das tias e cochicha, apontando o "padreco", que ainda não se apercebera do desastre.

-- "Você ficou maluco, Tutuca ?! É um padre, não rouba" !

Êle não seria "peste" se desistisse assim, sem luta:

-- "LADRÃO... cadê meu chocolate" ?!, retruca, aos berros.

Enquanto a tia chamava a mãe num canto, Sizenando via seu mundo cair. "Fôra pego, fôra pego, fôra pego"... martelava o cérebro, o chão lhe sumindo sob os pés e o fogo do Inferno a cozer-lhe os calçados. A mãe do garoto o chama, leva-o para a cozinha e diz, olhar sério e frio:

-- Tenho um presente para o senhor, espero que o aceite" !, e tira da cristaleira, bem no alto, um bule grande de porcelana e, dele, chocolate exatamente igual. O sacerdote estava salvo, era a "saída" que precisava, bastava voltar a sala e o entregar ao menino !

"Nandinho" era correto demais para envolver a dama em seu próprio erro. Recusou a idéia, devolvendo o objeto:

-- "Me perdoem todos vocês... ROUBEI, sim, não consegui resistir, sou louco por chocolate. Foi mais forte do que eu ! Me permita sair pelos fundos, não quero encarar as mocinhas" !

Na sala podia se ouvir a "conversa" de 2 pernilongos, tal o silêncio, quando a mãe as informou que o pároco já fora, tinha algo urgente para resolver.

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A estória acaba aqui... foi só até onde a inspiração me levou ! Não vou inventar que êle findou atropelado ao sair ou "largou a batina". Afinal, leigo ou eclesiástico, todo mundo pode comprar 1 chocolate, não precisa furtar. Como se trata de ficção a folha em branco aceita tudo ! Um sonso qualquer afirmou que todo escritor (ou poeta) tem a história completa quando senta para escrevê-la... ERROU, pelo menos no meu caso ! Nos sonetos, só me surge o terceto final, que fecha o poema, já no Cordel nem isso, por norma "nasce" verso e meio, se tanto. Curiosamente, a Trova se pensa inteira, por razões de ignoro. No conto acima, a criança surgiu depois, quando o texto já ía adiantado. A inspiração só "me deu" a cena do furto do chocolate !

"NATO" AZEVEDO (em 9/agosto 2019, 6hs)