Hoje,eu comprarei um jornal impresso
Acordo às nove e meia da manhã.Não pensem que sou vagabundo;estou num domingo.Não trabalho aos domingos.Não deve ser um bom dia para trabalhar.Não quis ser médico,bombeiro,enfermeiro,policial ou qualquer outra profissão essencial para a sociedade para não ter que trabalhar aos domingos!
Também não sou um insensível sem compaixão.De vez em quando compro balas dos vendedores nos sinais de trânsito,e no final de ano contribuo para a caixinha dos funcionários do prédio onde trabalho.
Agora que vocês já me conhecem melhor,revelarei o assunto principal desta pequena crônica:Hoje amanheci com vontade de comprar um jornal de papel!
Os mais novos certamente dirão que estou sofrendo uma crise de nostalgia...e estarão certos!
Como era bom sair de casa bem cedo,caminhar até a banca de jornal mais próxima,encontrá-la cheia de gente,todos comprando seus jornais,e ouvir os comentários sobre o jogo de futebol da véspera,o resultado da loteria,o final da novela...bons tempos.
A chuva não me desanima.Saio da cama,troco de roupa e vou para a rua sem tomar café.
Quando chego na banca não há freguês algum lá,e o jornaleiro,um homem na casa dos sessenta anos que ostenta um vasto bigode,segura numa das mãos uma coxa de frango frito.Peço meu jornal preferido no exato instante em que ele dá uma mordida na coxa.Do frango.Depois de mastigar e engolir o pedaço,ele responde:
__Acabou.Eu pedi poucos desse hoje;tenta na outra banca,lá embaixo__ diz meio sem graça,antes de começar a limpar com um guardanapo de papel o bigode melado.
Agradeço e parto para a outra banca.No caminho,passo pela única padaria que restou em meu bairro e vejo aquelas máquinas que ficam girando os frangos,onde o jornaleiro deve ter comprado o seu.Dois vira latas observam,salivando e imóveis,o movimento dos frangos nos espetos de metal.O apelido "televisão de cachorro" permanece insuperável.
A floricultura do Rodolfo continua no mesmo lugar.No passado,a loja chegou a vender até peixes de aquário.A empreitada não deu muito certo e ele voltou a ficar somente com as flores,mas foi uma boa tentativa.Quem não morre não vê Deus.
Quando chego na outra banca,nova decepção.
__Acabou,pedi poucos__comunica o jornaleiro.Este não tem bigode nem está comendo,mas ostenta uma daquelas barrigas que começam um pouco abaixo do pescoço e obrigam o cara a ter que escolher,na hora do sexo,se beijam ou penetram a parceira.As duas coisas juntas,impossível!
Lembro como cada jornal possuía seu estilo próprio:tinha aquele que dava mais ênfase ao noticiário político,o especializado em esportes,o que cobria com empenho os casos policiais(que escorria sangue quando torcido,diziam na época)...Presenciei inúmeras discussões acerca de qual deles seria o melhor.
Volto para casa e pego o carro.Vou no outro bairro.
Lá também não tem o que eu quero.
Retorno ao carro e vou num bairro mais longe.Nunca gostei destas redondezas.As ruas não são totalmente asfaltadas,a frequência é duvidosa e o tráfico está presente de forma escancarada.
Mas não desisto.Tomo como exemplo as grandes navegações e a corrida espacial.A América não teria sido descoberta nem a lua conquistada se não fosse a persistência e coragem dos exploradores.
Deixo meu possante numa calçada esburacada e cheia de mato.
Ao entrar na banca meu coração acelera:um exemplar do meu jornal repousa entre outros diferentes em cima de uma das gôndolas.
Sem perder tempo coloco minhas mãos nele.Finalmente!
__Moço!Esse daí está sem parte do caderno de imóveis!__informa a moça que toma conta da banca,depois de tirar um fone do ouvido esquerdo e mexer no celular pendurado em sua cintura.
__Não faz mal__respondo__Atualmente não estou comprando nem casinha de cachorro!__e estendo a nota para pagar a compra.
A moçoila vai até o caixa e prepara o troco.Nisso,meus olhos encontram,entre as balas e doces expostos na pequena vitrine da banca,uma pastilha garoto!
__Vou levar essa pastilha também!
Ela,que já estava com o troco na mão,refaz a conta e me entrega a bala.
Já dentro do carro,me pergunto: por que fiz aquela piada sem graça com casinha de cachorro?
Logo descubro o motivo.A moçoila me chamou de moço!
Mas que imaturidade!
De repente,uma sombra cresce do lado de fora do carro.Viro os olhos e vejo três homens.Um deles bate no vidro com o dorso da mão esquerda.
Serei assaltado.Abaixo o vidro rezando o pai nosso mentalmente.
__Bom dia amigo!__fala o homem.Só agora reparo que os três estão vestidos de terno.
__Bom dia...__engrosso a voz no melhor estilo "O poderoso chefão"
__Nós queremos convidá-lo para a festa da nossa igreja e ...
Aliviado,pego o convite da festa e volto para casa.O pai nosso adiantou.
Depois de tomar o café da manhã tardio,me preparo para folhear meu jornal.Antes de começar a leitura,porém,fico admirando a embalagem retangular da pastilha garoto:a cor verde metálica,a imagem impressa de cinco pastilhas brancas dispostas como se fossem cartas de baralho,a bandeirinha amarela com a palavra "garoto" escrita em vermelho por dentro no canto superior esquerdo e a palavra "hortelã" escrita em branco no canto inferior ...
A chuva fina que cai lá fora aumenta a sensação de viagem no tempo.
inicio a leitura.
Não tenho pressa.