A causa
Suas esquisitices mais me divertiam que aborreciam, no geral era simpático, numa proporção menor do que idiossincrático, mas ainda assim numa medida que não me permitiria omitir a simpatia numa descrição de sua personalidade. Estranhos hábitos como contar cem passos andando para trás todos os dias, ou comer com a mão esquerda em determinado dia da semana não o desabonavam de forma alguma. Era acima de tudo confiável, talvez por amanhar exageradas minúcias de organização, andava com suas contas rigorosamente em dia, apurava irritantemente os centavos, fosse a favor de si ou de outrem, nos acertos financeiros. Tal era o homem. Poderíamos nos perder por páginas incontáveis caso nos propuséssemos esmiuçar os meandros de tão complexa figura.
Chegávamos, ele e eu, de ônibus à cidade vizinha, um grande centro regional, porque também ele, apesar de haver passado por todas as agruras que passa o brasileiro que se arvora a tirar uma carteira de motorista, não dirigia nunca. Tinha-a por ter. Saltamos num bairro afastado, com aspecto de recém-traçado, com ruas ainda descalças e áreas enormes sem edificações. Havia muita poeira e capim seco. Eu não estava certo de onde íamos ou o que estávamos por fazer. Um homem de cabelos grandes e revoltos, magro e alto, calçado de chinelos e com uma espécie de alforje a tiracolo, nos esperava sentado ao pé de uma cagaiteira do cerrado, esse detalhe não me escapou porque haviam cagaitas apodrecidas no chão, remanescente da época em que aquela área era só pastagem, aquela era a única árvore em vários quarteirões. O meu amigo não disse palavra, nem o estranho, este acendeu um cigarro de cheiro esquisito, ofereceu-nos uma tragada, recusei meneando obstinadamente a cabeça, o meu amigo, pra meu espanto tomou o curioso pito, deu uma chupada, devolveu ao estranho que virou as costas e pôs-se a caminhar. Nós o seguimos em silêncio.
Chegamos a um bairro antigo, com casas baixas, uns raros prédios, um fraco comércio e trânsito calmo. Caminhamos em fila indiana pelo passeio estreito, o desconhecido puxando a fila e eu na retaguarda. Entramos numa loja que me pareceu absurdamente desarrumada, mercadorias amontoadas ou penduradas sempre em grande desordem, devia ser um misto de adelo com sebo, ao fundo havia um grupo de outros desconhecidos, discutiam em voz baixa. O nosso guia adiantou-se em direção aos outros rapazes. Meu amigo me cutucou o ombro com o cotovelo: “eles acham que você pode ser muito útil à nossa causa”. Vi-me embarafustado numa pilha gigantesca de revistas velhas procurando números antigos do Tex.
Saímos novamente os três e depois de outra caminhada o estranho bateu palmas diante de uma residência que me pareceu familiar. As grades do jardim mal cuidado e a fachada antiga da casa não me eram imagens novas. Uma senhora de uns sessenta anos veio abrir o portão de barras, também o seu rosto não me era de todo desconhecido, mas não podia me lembrar de onde e quando o vira antes. Também ali não houve palavras de cumprimento, ela voltou para o interior da casa e nós a seguimos. Sua sala de visitas pareceu-me um depósito de bugigangas. Conclui que a senhora havia convertido sua sala num ateliê de artesã e toda aquela barafunda era matéria prima para seus trabalhos. Destoante só um cesto com algumas cebolas grandes. Ficamos os quatro de pé e muito próximos, posto que nos faltassem assentos e espaço. O estranho tirou do seu alforje uma camiseta com a imagem de uma pessoa defunta no peito. Não posso precisar como obtive essas informações. O que disse à mulher também não sei, mas provocou-lhe um choro abafado, forçosamente contido. Meu amigo e o estranho saíram calados e eu os segui.
Depois de um pouco andar eu disse a eles que tinha de voltar lá. Não era justo que eu levasse uma das cebolas daquela senhora. O estranho mostrou-se muito aborrecido, mas eu não quis saber. Vi-me novamente diante da casa, sem jeito para bater palmas com aquela cebola numa das mãos.
A senhora dona da casa viu-me lá de dentro e veio me abrir o portão. Convidou-me a entrar e voltamos para a saleta atulhada, repus na cesta a cebola surrupiada. Escapa-me completamente o sentido daquelas cebolas. Passamos para outra peça da casa, meio que sala, meio que varanda, com um dos lados gradeado, por onde entrava um resto de sol da manhã a reproduzir no chão o traçado das grades. Partículas de poeira voluteavam no facho de luz branca. Havia uma mesa com seis cadeiras de madeira maciça pintadas de um verde escuro de muito mau gosto. Vi-me sentado ali com mais dois homens, um antigo patrão e o Sr... Mário? Olhei para o rosto da mulher, reconheci-a imediatamente. Adoro pessoas! Quando as conheço me ficam entranhadas na alma. Conheci um dia aquela mulher e o seu marido. Estivemos ali sentados havia... Fiquei fazendo cálculos mentais, subtraindo os anos daquela minha juventude no montante da minha idade atual, cheguei ao número 36. É isso! Havia trinta e seis anos. Perguntei a ela pelo Sr. Mário. Respondeu-me com outra pergunta: Então você não soube?
Não! Eu não soube. E não vim a saber até o momento. Estávamos outra vez caminhando pelas ruas, meu amigo e eu, não vi mais o estranho. Chegamos a um grande terreno fechado de muros com um grande portão de chapas. Este não estava trancado com um cadeado, mas bem amarrado com arame. Ele sacou de um alicate e começou a cortar o arame. Perguntei se estava autorizado. Disse que eu ficasse frio, que aquilo era só um terreno baldio, que não precisava de autorização. Definitivamente aquelas atitudes não combinavam com a personalidade do meu amigo. Insisti com ele que aquilo era uma invasão. Riu-se de mim como se eu fosse só um garoto assustado. Entrou. O capim estava ressequido e muito alto como se há muito tempo ninguém entrasse ali. Ele foi tombando a macega com o seu corpanzil e eu fui seguindo a picada. Haviam ali alguns veículos desmantelados, entre eles um caminhão já sem portas e com a lataria carcomida pela ferrugem, era o seu alvo. Aproximou-se. Segui-o já meio de longe e ressabiado, perscrutando os arredores como um larápio de verdade. Ele entrou na cabine, sentou-se no estofamento que tinha as molas saltando. Novamente vi uma nuvem de pó apenas percebida nas réstias de sol. Mexeu no emaranhado da fiação que pendia por sob o volante e, por absurdo que possa parecer, as luzes do painel se acenderam. “Só preciso de uma peça”, ele disse já sacando uma chave de fenda. Foi então que recuei. “você está furtando”, esperava que a palavra dura devolvesse-lhe o senso, mas pareceu nem me ouvir. Virei as costas e deixei o local correndo, muito assustado. Não queria ser cúmplice.
Só depois de muito caminhar sem rumo foi que relaxei um pouco. Um suor frio me empapava a camisa e minhas pernas tremiam. Entrei num bar, estava vazio à exceção de um rapazola que jogava numa dessas incômodas máquinas de ficha. Uma senhora gorda de aspecto sonolento atendia ao balcão. Pedi um conhaque.
Pelas portas abertas eu via muito distante, na direção daquele pátio donde me evadira, a fumaça que subia numa coluna escura. O ar estava parado. Ruídos de sirene começaram a se sobrepor aos sons eletrônicos do fliperama. A senhora do balcão entregou-me a bebida: “O que será que aconteceu?” Levantei os ombros afetando indiferença. Bebi de um sorvo, sentei-me e fiquei sentindo relaxarem os músculos do pescoço enquanto tentava reconstituir os acontecimentos. Não conseguia encontrar verossimilhança em nada. Fiquei por alguns minutos ouvindo o tum-tum acelerado dos meus batimentos cardíacos, a gente sabe quando a pressão arterial se elevou. O conhaque faz isso. Que conhaque? Afastei o ouvido do travesseiro e deixei de ouvir a pulsação. Por alguns instantes ainda recapitulei, buscando compreensão. Mas qual? Os sonhos são inverossímeis.