A IRA SANTA

A IRA SANTA

A cidadezinha pacata e ordeira elegera novo prefeito, a Ditadura afrouxara as rédeas permitindo eleições municipais em todo o país. O ano de 1980 estava próximo e o vilarejo de São Luís do Passa Sete ganhara 2 jovens dirigentes, trocados os velhos aborrecidos e acomodados, tanto o vigário senil e esclerosado quanto o prefeito atrasado. Os substituíram um "trintão" que "aprontara todas" quando jovem, um completo moleque -- para governar a cidade -- e, na paróquia, um "príncipe" com jeito de americano, cabelos de fogo, sardas e olhos azuis, ar de faraó, alto e magro, gestos nobres.

O jovem padre, agora vigário, assustou-se... sua igreja viva vazia, até nos domingos e, nas novenas, só velhotas desocupadas, os jovens estavam mais preocupados em frequentar discotecas. O fato é que o sacerdote decidiu bater de casa em casa, quase intimando os fiéis de sua paróquia a retomarem o bom hábito de assistir a missa. Valeu o esforço, muito cristão sensibilizado, sentindo-se honrado com a visita voltou a frequentar os cultos, as novenas tornaram a ficar cheias, gente sem nada a fazer "se refugiava" no belo templo. Mas o homem de Deus queria mais e, qual Moisés redivivo, só faltava quebrar tábuas na cabeça dos fiéis, reverberando contra pecados e descumprimento das leis divinas.

Muita gente se assustava com os berros do sacerdote, alguns homens se retiravam durante os sermões, chateados com as "indiretas". O padre tanto fez que, num belo dia, teve um enfarte em pleno discurso, rolou do púlpito escada abaixo e findou duro e de braço ereto no chão frio da Matriz. Pior: com o dedo em riste para cima, apontando Deus ! Foi um "Deus nos acuda", a cidade inteira veio conferir o fato estranho. Sugeriram quebrar o braço do santo defunto, mas concluiu-se que seria sacrilégio, profanação. Ficou daquele jeito mesmo ! Ao velório acorreram moradores das cidades vizinhas, não houve pensão ou abrigo suficientes para tantos curiosos. Abriu-se conveniente "buraco" na tampa do féretro para o incômodo braço e o esperto prefeito decretou luto oficial por 3 dias, preenchidos com fervorosas novenas pelo populacho aparvalhado e apavorado.

No dia do enterro a cidade parou... jornais da capital vieram cobrir o espantoso evento e o prefeito decidiu "tirar partido" do acontecimento. Unido a dois "ex-capetas" dos tempos de infância resolveu explorar a crendice do povo. Dias depois do sepultamento -- romarias extensas até a hora e fechar -- em noite de lua cheia lá foram os 2 jovens ao cemitério, passada a meia-noite, com martelo, cinzel, saquinhos de areia e cimento e uma tábua pintada e com inscrições, cópia exata da lápide do sacerdote venerado. Procuraram tumba semelhante mas distante, retiraram dela a tampa e, enquanto um fazia buraco na altura do suposto braço, o outro preparava o "mise en scene", vestindo surrada batina e abrindo espaços no velho sepulcro para lá deitar. A lua entre nuvens testemunhou a pantomima, tudo fotografado, com direito a "estrelinhas", girândolas e fogos de artifício ao redor da campa. Terminada a encenação cimentaram o buraco feito, disfarçando a obra com pesado vaso que ninguém ousaria remover. Faltava um detalhe: um buraco igual, agora sobre o túmulo do falecido vigário !

Na manhã seguinte dezenas de casas amanheceram com cartaz em xerox mostrando foto do braço hirto apontando os céus, rodeado de brilho e luzes. O burburinho foi geral: reuniu-se meia cidade em frente a Matriz e o povo saiu em procissão até o cemitério. Constatado o buraco no belo mármore da tampa estava materializado o milagre: o padre "ressuscitara !

Agora há extensas romarias ao túmulo santo, a cidade vive lotada de turistas, a Igreja lotada de fiéis, a Prefeitura lotada de dinheiro da venda de "imagens" do pare de dedo em riste e o jovem prefeito preparou projeto para aprovação na Câmara, mudando o nome do município para "São Luís Dedo Durão", apesar dos protestos da bancada de oposição, boa parte evangélica. Já há sinais de milagres e graças alcançadas, mas isso parece ser devido à histeria da população beata. Os 2 rapazes, autores da farsa, foram mandados para distante balneário por 3 meses, tudo às custas do prefeito, para não "abrirem o bico". O Vaticano pensa em enviar equipe ao local !

"NATO" AZEVEDO (em 11/julho 2019)