ALVORADA
Acordar e fumar um cigarro. Acordar dos sonhos intranquilos, por volta das cinco da manhã, acender um cigarro e olhar pela janela que o sol ainda não nasceu. Não aqui, não nessa cidade, nesse bairro, nessa rua, nessa casa, em mim. As nuvens parecem com penumbras que demarcam o que existe de mais gélido dentro de mim. São nuvens turvas, são nuvens carregadas. Quem sabe, Iansã mande chuvas e raios e caso mandasse poderia lavar um pouco do muito da sujeira que trafega meu corpo.
Acordar e fumar um cigarro. Depois de ir dormir com as drogas que vem com bula, encontradas em qualquer farmácia, sentindo o peso do mundo ser atenuado, porque o efeito psicotrópico apenas atenua, escape, nunca sara. Acorda mirrado, ressaca da vida, ressaca mesmo sem ter a embriaguez da noite passada. E sempre a pergunta ao expelir a fumaça do cigarro: Que farei com um novo dia? Uma possibilidade? Irei ao trabalho como as pessoas comuns? Serei um exemplo de desempenho e competência? Mandarei uma mensagem afirmando alguma doença? Desligarei o telefone e ficarei aqui deitado, estagnado, paralisado?
Acordar e fumar um cigarro. E, então, vem o despertador avisando da hora do antidepressivo, do xarope para uma tosse que nunca termina, um relaxante muscular para as dores que não cessam, um copo de água apenas para engolir os comprimidos e fingir que tudo anda absolutamente bem. E anda. O mundo continua a girar, as pessoas começam a trafegarem nas ruas, o café, os pães, os sucos, os ovos fritos, o queijo, tudo posto na mesa das pessoas que seguem com as suas vidas criando propósitos e acumulando memórias de dias efêmeros que se apagam com um deitar no travesseiro pela noite.
Acordar e fumar um cigarro. Quem sabe ligar para os meus iguais e repetir ao telefone palavras sobre saudade, ausência, tristeza, dependência, ansiedade, depressão, morte, suicídio e coisas que vão se tornando cada vez mais banais do que aquilo que chamo de vida. Cada vez que conto a mesma história para alguém é repetir para mim mesmo o velho discurso: resisti mais um dia, creio que estou no caminho certo. Mas, o que seria essa coisa de caminho certo? Apenas sobreviver a outro dia? Sustentando-me por meio de remédios, cigarros e um sol que não consigo enxergar?
Acordar e fumar um cigarro. Quem sabe mais tarde, passado os primeiros momentos da aceitação de mais um dia banal, em uma vida banal, de um ser banal – eu – volte a plena miséria e a aceite, como um bêbedo sedento por um copo de cachaça, como um viciado em busca de drogas, como um romântico se afogando nos platonismos baratos, que vai até a padaria de manhã para olhar a cara do outro e não dizer nada. E o que posso falar de todas essas pessoas que digo serem comuns sendo eu também comum e frustrado como elas. Não posso.
Acordar e fumar um cigarro. Buscar algum sentindo para tatear durante o dia: a espera de uma visita, sentir saudade, chorar um pouco enquanto os outros não acordam, abrir um livro, sentir um trecho de “O marinheiro” chegando dentro de mim e sentar no sofá da sala em completo silêncio. Fumar outro cigarro. Outro. Outro. Outro. Outro. E no decorrer da decadência orgânica – que também expressa a existência – colocar um sorriso nos lábios e dizer bom dia para cada pessoa que vai despertando dos braços de Morfeu.
Acordar e fumar um cigarro. Antes que todos acordem: jogar água gelada no corpo para sentir ao menos o choque gélido no meu organismo, na minha pele, como se isso fosse minha maior tentativa de sentir algo, chegar perto de algo, migrar para fora do vazio e disfarçar o que bem sei já não sentir dentro de mim.
Acordar. Depois de muitos cigarros. Continuar seguindo até a outra noite, até a próxima dose de remédios, até deitar no travesseiro e desacordar do mundo e migrar para os sonhos intranquilos, porque, ao menos neles tenho veracidade nos meus planos sequências... Por hoje, por agora, antes do despertar dos outros, fumar um cigarro e ficar olhando as paredes laranjas.