Ícelus

Ato Um | Falas e Falácias

O Edifício Olímpo era uma raridade do século XXII, um dos únicos habitáveis na superfície do já degradado planeta Terra. Eu insistia em morar no apartamento que possuía nele, muito pelo meu estranho gosto por memórias da superfície.

O mundo já não possuía mais as mesmas cores que meus antepassados costumavam ver e registrar, nos dias atuais o vermelho domina a imensidão dos céus e o marrom permeia o solo, cores mórbidas e opacas.

Ao contrário da catastrófica sensação que a superfície passa, o subsolo é um lugar convidativo para os novos terráqueos. Não há razão para sofrer neste “novo” mundo, o trabalho e a dor não existem mais, pois as máquinas podem prover qualquer coisa que se desejar. Dessa forma, resta a nós deste século o ato de criar e pensar, uma sociedade de poetas, engenheiros, químicos, advogados e artistas...

A campainha toca tirando meu momento reflexivo, é provável que seja meus convidados.

Heitor era um jovem de aparência atlética, tinha uma descendência grega por parte de pai, e era considerado um físico teórico respeitável. Lucca, por outro lado, possuía uma aparência pálida e doentia por culpa do uso excessivo de drogas experimentais, era um especialista em arte e um pintor primoroso.

Deixei-os entrar e olhei o corredor a procura do terceiro convidado, mas deparei-me apenas com as lâmpadas fluorescentes que oscilavam em iluminar o caminho até o elevador rústico, uma raridade dos tempos vitorianos.

- Muito bem senhores, acho que faremos nossa reunião em minha biblioteca, acomodem-se, eu buscarei alguma bebida.

- Qualquer coisa com álcool seria aceitável.

Comentou Heitor, o grego. Que me aguardava sentado em uma das poltronas com os olhos semicerrados, pronto para perguntar algo.

Enquanto isso em pé no outro extremo da sala, Lucca avaliava minha coleção de livros do H.P. Lovecraft.

- Andam contando histórias sobre você no subsolo... Histórias sobre o contador de estórias, não é interessante?

- Interessante? Já não conto nada há tempos. Talvez minhas inspirações estejam sendo canalizadas para outras coisas, e pode ser que não haja máquinas suficientes lá embaixo.

Sirvo-lhe um copo de uísque com três pedras de gelo e percebo uma espécie de aversão em seu rosto.

- Se julga fofocas do subsolo mais dignas do que as minhas palavras, diga-me: o que andam falando ao meu respeito?

Aproximo-me dele e inclino levemente meus ouvidos em direção aos seus lábios.

- Ora, Richard, a retórica nunca foi o teu ponto forte. Os subsolianos comentam sobre a tua reclusão na superfície, sugerindo que ela pode indicar uma possível falta de ânimo.

Dizia, fazendo pausas para saborear a bebida.

- Eu não estou morto como pode ver meu caro, e procuro outras formas de realizações.

Heitor ergueu as sobrancelhas, tomou outro grande gole da bebida e prosseguiu:

- Outras formas... Teu convite me intrigou. Como disse, não estás morto, e isso é inegável. No entanto, da mesma forma, não vejo máquinas aqui dentro.

Se nota bem um tom de desdém em sua voz.

- Você está olhando de maneira equivocada. Talvez mais tarde eu possa te mostrar uma nova perspectiva.

Permaneço em pé e sirvo-me também de uma dose.

- Vocês dois continuam trocando farpas?

Indaga Lucca, que embora continuasse a bisbilhotar a fileira de livros, analisando agora algumas obras do Neil Gaiman, estava prestando atenção à nossa conversa.

- São apenas questionamentos e respostas caro Lucca.

Antes que alguém pudesse revidar, a campainha tocou novamente anunciando a chegada do terceiro convidado.

Sophie possuía uma pele completamente escura, como se cada raio de luz que a tocasse relutasse em deixá-la. Seus cabelos desciam em graciosos arcos sobre os ombros nus, e seus olhos verdes me encararam com a voracidade de antigos amantes.

- Entre...

Ato Dois | Assimilações Teóricas

Ao concluir as explicações sobre minhas atividades na superfície, deparei-me com expressões atônitas e de descrença com a parte teórica lançada ao ar. Era evidente que o artista estava deslumbrado com a digressão, enquanto Heitor negava com a cabeça. Sophie, por sua vez, foi quem conseguiu balbuciar algo.

- Sua proposta escapa um pouco da realidade... Como você conseguiria alcançar a telepatia?

- Ler mentes? Isso só pode ser brincadeira!

Gritou o grego incrédulo; se tivesse um prato, certamente o teria arremessado contra a parede.

- Não é simplesmente ler a mente; é literalmente entrar no pensamento de alguém e conviver com tudo que o envolve. Não os convidei aqui para apresentar uma ideia utópica ou manter os nossos sofismas de sempre. - Bom... acho melhor levá-los ao laboratório e iniciar os procedimentos. Sophie, você trouxe o que eu pedi?

Ela deu uma leve batida sobre a maleta ao lado da poltrona.

Chegando ao laboratório os boatos do subsolo se revelaram meras falácias. Nas paredes, telas de cinquenta polegadas ultrafinas exibiam gráficos dos avanços dos meus estudos e experimentos realizados durante minha solidão. Ao lado delas, duas grandes CPUs de infinitos terabytes me auxiliavam nos cálculos. No centro, duas macas metálicas estavam dispostas lado a lado.

- Vocês devem estar familiarizados com o conceito de inconsciente coletivo...

- Carl Jung, correto?

Indagou Sophie.

Meneei a cabeça em concordância.

- De fato, eu nunca conseguiria “ler” a mente de alguém sem a sincronicidade. Descobri que preciso traduzir os símbolos antes de poder usá-los.

Heitor continuava no ciclo de negação, verificando meus dados nos computadores. Sua mão não saía dos lábios e seus olhos estavam arregalados.

- Tentei alcançar esse mundo inconsciente através da minha própria mente. Porém percebi que não há como acessar o inconsciente coletivo por si, esse exercício necessita do outro...

- Estando na mente alheia não existem barreiras.

Lucca completou meu raciocínio em êxtase.

Percebi então que o grego não negava por descrença, mas puramente pelo medo de ultrapassar uma linha permitida nem mesmo aos deuses.

O silêncio momentâneo foi quebrado pela doce voz da minha musa negra, que colocou a maleta sobre a mesa abrindo-a.

- Você precisa da ajuda de Morpheus não é mesmo?

De dentro ela tirou um frasco de vidro contendo uma solução translúcida e uma seringa.

- Os sonhos são o segredo do meu experimento, eles são a porta de entrada. Mas para isso, preciso de um voluntário.

- Eu irei.

O artista berrou já partindo para uma das macas.

Atravessei a sala até o computador na parede oposta. Abaixo dele, havia um módulo de conexão desenvolvido por mim, ao qual tomei a liberdade de chamar de "Intrínseco Neural". Tratava-se de uma caixa metálica retangular com um metro de altura. Possuía um topo esférico transparente, preenchido com uma solução de fluido corporal estéril. No interior, em um nível microscópico, havia milhões de nanorrobôs que ajudariam a sincronizar nossas mentes. Isso seria realizado por meio de um tubo feito com células-tronco e líquido cefalorraquidiano. Esse tubo estava interligado à máquina por dois terminais, permitindo-me conectar-me ao voluntário, ou seja, ter acesso aos "sonhos" de Lucca.

Puxei o módulo até o centro do laboratório, entre as macas. Enquanto isso, Sophie preparava as doses das duas drogas que nos ajudariam no processo: morfina e naloxona. Apenas com a dose correta de morfina conseguiríamos acessar o estado de meditação adequado para a sincronicidade, enquanto a naloxona nos resgataria de lá.

Ato Três | Sobre a Mente

Deitado na maca, instruí Heitor e aguardei que ele instalasse cuidadosamente os cateteres que conectavam a máquina dos sonhos em mim e no meu amigo Lucca, que permanecia em uma espécie de euforia.

Senti a picada da agulha no braço esquerdo, e rapidamente apaguei. Enquanto vagava pelo túnel escuro do sono, lembrei-me de um período em que a vida parecia ter mais cores, algo que nunca vivi, uma memória implantada por vastas leituras sobre os tempos antigos e cápsulas de nostalgia, facilmente encontradas em qualquer farmácia da superfície.

...

Eu e Lucca morávamos no mesmo quarto na época da faculdade, e desde cedo, ele já cursava todos os tipos de arte, vivia pintando as paredes com imagens peculiares do que dizia ser suas primeiras obras. Eu, por outro lado, estava quase concluindo meu curso de Psicologia, onde, nas trocas de aula, encontrava Heitor para fazer longos debates intelectuais.

Porém, pouco tempo depois de concluir o primeiro curso, me inscrevi para Letras, pois adorava escrever qualquer coisa que me viesse à mente. Creio que minha verdadeira paixão foi aprender um pouco de tudo, e talvez por isso tenha me tornado um contador de histórias.

...

Entramos em um velho estabelecimento cujas janelas eram protegidas por panos, e o reboco parecia prestes a desmanchar. Ali dentro, havia uma série de camas de campanha com criaturas humanoides contorcendo-se de dor e desgosto. Nunca consegui entender por que algumas pessoas não suportavam viver no subsolo, e obviamente atualmente isso se aplica a mim.

Heitor correu à nossa frente até um par de médicos do outro lado da sala.

- Estão gostando da superfície? HAHAHA... Bom, eu sou Bonnie, e esta aqui é minha companheira, Sophie. Foi a primeira vez que a vi, e mesmo com aquele capacete e todo o traje que lhe cobria, pude perceber os olhos verdes em meio ao rosto escuro, pareciam estrelas no breu da noite.

...

O mundo áspero desapareceu da minha frente, junto com esse emaranhado de memórias. Logo me vi em uma sala escura, ouvindo um tic-tac e o som de uma respiração acelerada.

- Alô! Tem alguém aí? Lucca?!

Gritei para o vazio, sendo respondido por uma voz ao longe. De súbito, uma luminosidade emanou das profundezas.

tic-tac-tic-tac-tic-tac

Ao me aproximar, vi a pelagem branca e desgrenhada que cobria seu corpo. Não devia ter mais de um metro e meio. Estava de costas para mim, respirando de modo rápido e nervoso.

tic-tac-tic-tac-tic-tac...

- Estou muito atrasado

Com um giro rápido, o coelho virou-se em minha direção, exibindo um par de olhos assimétricos e a face disforme.

Por um momento, achei que aquele seria o fim da minha aventura. Porém, o animal assustador parecia não compreender minha presença.

- O que você está fazendo aqui? Como você entrou aqui?

Uma de suas mãozinhas segurava um objeto dourado.

tic-tac-tic-tac-tic-tac-tic-tac...

- Eu não tenho tempo pra isto, estou atrasado, eu estou atrasado!

Em outro instantes, ele sumiu como um raio.

O lugar era um vazio imenso, indo em direção contrária ao que eu imaginava ser.

A ideia que eu tinha de um sonho era repleta de formas e sensações, lembranças e imaginação. Creio ter caminhado por horas naquele silêncio denso e contínuo.

Em meio às andanças naquele vácuo mental, cheguei em um ponto onde a textura do piso mudou, levei as mãos até o solo e senti o sento gelatinoso e gélido, logo após tocar a superfície, elas foram sugadas até a altura dos ombros. Nessa profundidade, toquei em algo ríspido e ainda mais gelado, segurei e puxei com toda a força que possuía.

A placa subiu do chão e ergueu-se na minha frente, revelando-se uma porta de madeira, com pedaços de algas viscosas. Diante de mim, agora estava uma espécie de passagem; abri e a atravessei sem ressalvas.

Ato Quatro | Quando Morpheus revela-se Ícelo

Ao atravessá-la, voltei ao que pensei ser o estado lúcido. Enxerguei o teto e ouvi gritos agudos vindos do laboratório. Eu permanecia imóvel, e o primeiro pensar que me veio à mente foi "Paralisia do sono” me esforcei para erguer ao menos uma das mãos até a altura dos meus olhos, percebi que ela era uma sombra escura e cheia de espinhos, translúcida e quase irreal. Em seguida, sentei na maca e verifiquei o ambiente, o mundo estava diferente, havia cores vivas em tudo, além de fitas orgânicas que dançavam pelo ar.

Essas fitas eram como teias de aranha conectando todas as coisas a minha volta. Algumas saíam de mim e seguiam até o módulo, e mais algumas se espalhavam pela sala. No mesmo instante, me veio um filme antigo à mente. Acho que o nome é Darko alguma coisa...

Ao olhar para essas fitas, notei meu corpo ainda adormecido e senti novamente um peso descomunal. Algo me fisgava, tentando puxar-me para a realidade. Me senti ficar mais e mais pesado, e à medida que despencava rumo à maca, os sons ficavam mais claros. Abri os olhos e enxerguei o teto do meu laboratório novamente; os gritos permaneciam lá.

Heitor, pegue a naloxona! Rápido! Ordenava com histeria a musa negra.

Lucca não havia despertado; ele estava convulsionando na maca ao lado, e isso era impressionante! Não o fato de o meu amigo ter um ataque, mas a percepção que eu tinha sobre isso. As fitas coloridas dançavam freneticamente sobre ele. Elas saíam de seu corpo, tentando conectar-se às fitas que saíam do corpo da Sophie, como se buscasse socorro. Ao mesmo tempo, uma espécie de nuvem azulada flutuava sobre ele, era disforme e agitada, lutava para voltar ao corpo sobre a maca, porém esbarrava em uma espécie de muro natural do corpo. Heitor buscava desesperado pela seringa na maleta médica. As fitas dele tremiam em volta de seu corpo.

Foi então que eu levantei, já removendo o cateter que me prendia.

- Não saia da maca, Richard, já vamos resolver isso!

Não estava preocupado com quem falou comigo, pois tinha a certeza do que deveria fazer e porque estava ali. Caminhei meio cambaleante em direção à outra maca, coloquei uma mão sobre a cabeça de Lucca e disse...

- Vai dar tudo certo.

Sem cerimônias, segurei a nuvem azul sobre ele e removi as fitas que ainda estavam presas entre os dois. Quase no mesmo instante, seus movimentos cessaram. Sophie me observou espantada, sem entender o que eu havia feito.

Notei que as fitas dela encolheram-se, tentando manter-se afastada de mim.

- Você o matou! Seu assassino!

Era Heitor que gritava e repetia isso como um mantra.

- Seu filho de uma puta! O que estava pensando quando montou essa máquina? Quem mais foi vitimado com essa sua ideia diabólica?!

Ele correu para onde Sophie estava, querendo tirá-la de perto de mim.

Fitas rosadas emanavam dele, cobrindo-a como uma espécie de manto protetor. Eu literalmente me sentia nos dois mundos ao mesmo tempo. As fitas ao que me pareceu, possuíam um significado muito específico e traduziam os sentimentos e as ações físicas emanadas nesse plano feérico.

Tomei conta de que havia trazido algo comigo, a viagem para dentro do mundo dos sonhos, o mundo de Sandman, realmente me revelou algo superior ao que eu imaginava. Ergui minhas mãos e da ponta dos dedos conjurei dez fitas pretas que dançaram em direção daquele que não parava de me ameaçar.

Sem poder imaginar o que estava prestes a atingi-lo, ele apenas observou tudo com um semblante curioso. E quando minhas fitas penetraram sua pele, a seringa que o mesmo segurava despencou. As fitas conjuradas retalhavam sua existência na outra dimensão. Em dado momento, percebi a falta de coragem dele quando o escudo que protegia Sophie diminuiu de tamanho, tentando a todo custo proteger a si próprio.

Olhei minhas mãos, e meus dedos serpenteavam tanto no físico como no onírico, senti o poder crescendo dentro de mim, senti que eu era a próxima evolução, o próximo passo. Sophie então desabou sobre o solo desacordada, e neste momento aproveitei para tacar-lhe algumas fitas avermelhadas. Conscientemente não sei porque fiz isto, mas tenho uma certa ideia de que me ajudará a trazê-la para o meu lado.

Volto a sentar na maca e vislumbro todo o laboratório ao meu redor, vejo os corpos de seres que neste momento são inferiores a mim, simples sacos de carne que não chegam nem perto do potencial que carregam. E tenho comigo mesmo que tudo isto foi um acontecimento necessário para a evolução.

O próximo degrau a ser galgado pela humanidade passa inteiramente por mim.

Próximo Ato: A Balada dos Anjos Caídos.

Matheus Lacerda
Enviado por Matheus Lacerda em 10/05/2019
Reeditado em 16/12/2023
Código do texto: T6643383
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