Diário

Estou de volta, faz tempo que não escrevo neste diário velho e empoeirado, creio que o ar tem estado acrimônio pra mim nesses últimos dias. Quero relatar aqui algumas experiências que venho tendo e elas não tem sido benéficas para mim, não me lembro exatamente de tudo que ocorreu antes de estar escrevendo aqui. Pois as memórias parecem desaparecer logo após o ocorrido e por este motivo tentarei escrever tudo de agora em diante…

Dia 1 - dia 8 de Janeiro,2019

São duas da manhã neste exato momento, estou deitada em minha cama com uma lanterna e esse caderno velho ao qual chamo de diário, as coisas continuam diferentes, eu estava dormindo e comecei a ouvir arranhões agudos vindo da minha porta, o cobertor está sobre minha cabeça, acho que ele vai me proteger do pior, mas esses arranhões não param… Eu não entendo o porquê dos meus irmãos e dos meus pais não ouvirem isto também, estou achando que seja apenas a minha imaginação, espero que seja isto.

Dia 2 - dia 9 de Janeiro,2019

Acabei de acordar, não vi as horas, mas creio estar em meio a madrugada. Todos dormem, a cidade dorme, eu não durmo.

Minhas pernas estão paralisadas, não consigo mexer nada da cintura pra baixo, eu as sinto, porém é como se um peso enorme estivesse sobre elas, ao menos não tenho dor.

Dia 3 - dia 10 de Janeiro,2019

Neste exato momento algumas coisas do meu quarto estão se mexendo, estou ouvindo barulhos dentro do guarda roupa e objetos caindo da mesa na cozinha, parecem ser panelas e copos de vidros, um a um. Eu sei que eu não estou sonhando…

Dia 4 - dia 11 de Janeiro,2019

Hoje eu vi uma mulher, ela estava dentro do meu quarto. O rosto dela era embasado e a pele pálida, ela estava me encarando e cantarolava algo pra mim, porém o som da melodia que provinha de sua boca era muito baixo. Um sussuro inaudível.

Dia 5 - dia 12 de Janeiro,2019

A mulher apareceu novamente, exatamente as três da manhã. Desta vez ela me acordou com seu canto incólume, agora ela estava ao meu lado e dava pra ver bem seu rosto, os poros em sua pele facial e os cabelos negros que lhe caiam na face. Ela não estava me olhando desta vez, somente cantarolava.

Dia 6 - dia 13 de Janeiro,2019

Acabo de acordar novamente no meio da noite, é verão e o calor está escaldante. Deixei a janela aberta pra entrar ar, a luz da lua tem adentrado meu quarto, uma luz tênue e azulada… Desvio o olhar da janela para o chão e vejo a silhueta de um felino, uma sombra.

Volto com meus olhos para a janela e o gato está sentado ali, um gato negro, que me encara e mostra os dentes pra mim em sinal de reprovação, seus olhos brilham no semi breu da madrugada.

Dia 7 - dia 14 de Janeiro,2019

Ainda está quente, acordar em meio as madrugadas já é frequente como vocês podem notar nas últimas transcrições, tenho olheiras, meus olhos pesam. Desta vez só tenho a sensação de estar sendo vigiada por algo, alguma presença invisível.

Dia 8 - dia 15 de Janeiro,2019

Ouço sons e desperto novamente. A melodia não me é estranha, vem de fora pra dentro.

Vou até o telhado e lá está ela novamente, após tantos dias sem me visitar ela me dá o ar da graça, flutuando acima do telhado vizinho e cantarolando para alguns gatos que a rodeiam.

- Quem é você?

Balbucio.

Os gatos se assustam e correm, logo a chuva começa a cair e ela some mais uma vez sem dar maiores explicações.

Dia 9 - dia 16 de Janeiro,2019

É de manhã, na madrugada passada eu não acordei. Estou me arrumando para ir trabalhar, porém tem algo errado em meu rosto, minha sobrancelha esquerda foi raspada pela metade.

Eu não estou me sentindo bem com isto.

Dia 10 - dia 17 de Janeiro,2019

O som dos trovões me acorda durante o dilúculo, eu devo ser algum animal noturno.

Me levando para fechar a janela me preparando para a vindoura tempestade e na árvore a frente de onde estou (uns seis metros de distância) lá esta ela, a aparição, bem na ponta dos galhos grossos. Me sinto hipnotizada pela melodia que sai dos seus lábios pálidos, mas logo sou jogada pra longe do transe ao ver um relâmpago atingir a árvore da qual o vulto se encontra.

Dia 11 - dia 18 de Janeiro,2019

Ouço vozes. Várias vozes diferentes. Gritos agudos e baixos.

Abro meus olhos e no batente da janela no mesmo local onde eu vi aquele gato negro está uma gralha, devo dizer que elas são lindas... mas os gritos, esses gritos não são dela, o animal parece estar apenas emulando sons. Seu bico abre e fecha e ainda sim os gritos continuam a sair…

- EMA! EMA! EMA! EMA!

A gralha fala meu nome e sai voando, corro até a janela e não há nada mais no ar ela sumiu.

Dia 12 - dia 19 de Janeiro,2019

Em meio a madrugada ouço algo cair em meu quarto, ao me levantar da cama e ascender a luz encontro um livro feito com couro de animal recém tirado (dado ao cheiro e ao frescor da pele) na frente algo escrito em latim eu acho:

“WICCA”

Dia 13 - dia 20 de Janeiro,2019

Não tive coragem de abri-lo ontem, não sei se por medo ou desinteresse, acho que medo se encaixa melhor no que eu senti. Porém agora há pouco eu o abri e um bilhete estranho estava logo após a capa.

“Sul do País das Maravilhas

Irmã, por Garoth.

Chame pelo meu nome”

Dia 14 - dia 21 de Janeiro,2019

Quem diabos é Garoth? Esse nome agora não sai mais da minha mente. Hoje eu adormeci umas quatro vezes no trabalho e em todas tive umas espécies de visões, mas o que eu via era apenas um elemento, uma chama pequena que se alastrava. Um fogo de cor azul.

Dia 15 - dia 22 de Janeiro,2019

Estou intrigada com este livro pois de início o mesmo ensina algumas técnicas medicinais e alucinógenas com ervas e especiarias, e em algumas outras envolvem pequenos ritos com animais e sangue. Vou ler mais algumas páginas pra tentar entender melhor.

Dia 16 - dia 23 de Janeiro,2019

Neste momento confesso sentir um pouco de medo, cheguei na metade do livro que mais parece com um compilado de receitas. Pois fala sobre ingredientes e modos de se fazer o que é chamado nas páginas de “Liturgia”... em alguns outros momentos me são contadas histórias de grandes mulheres de séculos atrás, irei contar mais coisas amanhã.

Por hora irei dormir, estou muito cansada.

Dia 17 - dia 24 de Janeiro,2019

Senti um pouco de medo ao ler o segunite trecho:

“Disse a avó:

Recorda menina, que as plantas estavam aqui desde que a Mãe Terra é Mãe.

E nós que somos suas filhas chegamos depois.

Elas contêm a memória sagrada de nossas raízes.

Lembre-se do sangue alvo e puro, de se banhar pela jovialidade.

De servir apenas a um e de chamá-lo sempre”

Dia 18 - dia 25 de Janeiro,2019

Creio estar chegando ao final do livro e apesar dele ir se tornando macabro a cada página que vou lendo, vejo beleza e sabedoria nas palavras que provém dele. Estes ensinamentos são todos de Goroth e de sua vasta sapiência.

Dia 19 - dia 26 de Janeiro,2019

O WICCA explicou bem quem é Garoth. Eu colocaria algumas coisas aqui neste diário caso não tivesse medo de cair nas mãos erradas. Porém acho que posso dar uma menção do que ele realmente é.

Pelo que li, o mesmo se trata de um demônio que sussurrou nos ouvidos das outras mulheres que escreveram as páginas deste livro. Ou seja este é um livro coletivo, escrito por várias mãos que emularam os conhecimentos de Garoth.

Dia 20 - dia 27 de Janeiro,2019

Cheguei perto do final do livro, não exatamente o fim pois ainda existem várias folhas em branco. Pelo que eu entendi a cada ano ou a cada vários anos uma mulher é escolhida para escrever o que o demônio sussurrar desde que ela o chame.

Vou pôr um trecho de uma das bruxas relatando a madrugada do seu chamado:

“É uma noite fria de novembro de 1890

neste momento creio que seja a melhor hora para chamá-lo, estou cheia das anormalidades que estão ocorrendo e tudo parece ser premeditado para que eu o invoque...”

Dia 21 - dia 28 de Janeiro,2019

Outra coisa que eu notei de estranho no livro são as palavras, eu não consegui pular nenhuma página pois todas as letras ficavam embaralhadas ou numa espécie de idioma rústico do qual não consegui localizar nada na internet.

Dia 22 - dia 29 de Janeiro,2019

Um dos ensinamentos mais recorrentes que tenho encontrado lendo este livro é sobre o que elas chamam de “Mãe Terra” ou “Deusa Mãe”.

A expressão se faz presente e é sempre exaltada, como se todas as energias emanassem dela, para exemplificar irei colocar um trecho abaixo:

“Hoje é o momento de festejarmos a primeira colheita.

O Deus Sol nos trouxe a luz,

A Deusa Mãe nos presenteou com as sementes.

Comemoro o pão da vida que sustenta a todos.

Abençoada seja a fartura da Mãe Terra…”

Madrugada do dia 30 de Janeiro, 2019

Hoje é um dia peculiar... eu decidi por chamar Garoth. Todos esses acontecimentos me trouxeram até este momento ímpar e eu quero isto. Anseio pela sabedoria e desejo também ser tão poderosa quanto as minhas antepassadas, desejo sentir a

volúpia do mel escorrer por entre meus lábios e quero provar da manteiga macia e salgada como nas escrituras.

Qual será o preço detudo isso? Não faço a mínima ideia, mas irei deixar esse diário como um leve testemunho do que vivi e ele será minha última conexão com a minha forma humana, pois almejo transcender.

...

WICCA - A Floresta das Árvores Vivas – Rito de Passagem, por Ema.

Nesta madrugada de Janeiro do ano de 2019. Decidi por mim mesma chamar o grande mestre Garoth, que prontamente apareceu primeiramente em meu quarto, envolto do manto da negritude do céu estrelado.

Ele derramou em minha boca uma mistura de Leite e Mel e o gosto era divino, eu adormeci de tamanho prazer sobre os braços quentes dele e apenas acordei horas depois em outro lugar. Um lugar totalmente diferente envolto de árvores donde as raízes brotavam do chão e prestigiavam a minha chegada.

Ao longe eu presenciei uma grande luz azulada, uma grande fogueira em meio a um círculo dessas árvores exóticas. Ao me aproximar notei também a presença de outras mulheres que cantavam alto o som que eu já ouvirá em outrora.

Eu me sentia revigorada com aquilo e logo notei que meu corpo também estava nu e minha pele refletia a lua e o azul do fogo. Logo as outras irmãs perceberam minha presença e ali os cânticos se intensificaram elas cantavam primorosamente e dançavam pela fogueira sem medo algum de se queimar.

Eu não me dei conta e quando percebi já estava no meio delas dançando livremente e cantarolando também, e sorri e me senti completa e alcei voos maiores pelos céus com quem agora eu chamava de irmãs.

Fim

Matheus Lacerda
Enviado por Matheus Lacerda em 10/05/2019
Reeditado em 15/11/2022
Código do texto: T6643377
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2019. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.