JOCASTA

JOCASTA

Encontrava-me vagando pelas ruas do centro do Recife após uma cervejada com meus amigos da faculdade. Como sempre fui o último a deixar o bar Savoy na Avenida Guararapes perto da meia noite. Eu tinha certeza que caminhava na direção oposta ao cais após haver atravessado a Ponte Maurício de Nassau com destino à Avenida Conde da Boa Vista, onde esperava apanhar o ônibus que me levaria para casa. Ledo engano. Já estranhando a demora em chegar à parada do bacurau (já era mais de meia-noite) me surpreendi-me com a visão do cais envolto em uma bruma escura, onde vultos femininos pareciam flutuar sugados pela luz das estrelas. Cansado da caminhada sentei em dos bancos da Praça do Arsenal. De repente um vulto saiu da bruma e segurou meu braço.

─Está perdido amor?

─Acho que inverti o percurso, respondi sem mesmo olhar para onde o lugar de onde vinha a voz.

─Você quer ir pra onde?

Girei o rosto e deparei-me com uma mulher linda. Naquelas condições todas as mulheres eram lindas, mas essa era bonita mesmo. Não a descrevo porque ainda não é hora nem quero obstruir a sua imaginação, querido leitor. Sigamos com o relato.

─Eu ia para casa, mas agora já nem sei!

─Não quer ir para a minha?

Claro que eu sabia o que ela queria, Fui logo dizendo:

─Minha filha, eu não tenho um puto no bolso. Eu ia pedir ao cobrador para me deixar ir de graça.

Quem lhe disse que eu quero dinheiro? Eu moro aqui perto. A gente conversa um pouco, eu lhe dou o dinheiro da passagem e tudo certo.

Aquilo me impressionou ao mesmo tempo em que me assustou. Sabia que não havia cemitério nas proximidades, lembrando então das histórias de trancoso ouvidas ao pé do rádio na casa de minha avó no bairro da Mangueira. Não. Não era uma assombração. Era agradável imaginar-me desejado por uma mulher, mesmo sendo uma profissional do sexo. O efeito das cervejas e o cansaço se juntaram à beleza da mulher. Seguimos para dentro da bruma. Caminhamos mais ou menos uma quadra e subimos até o primeiro andar de um velho pardieiro na Rua da Moeda. Assim que transpus o portal tudo ao meu redor ficou preto e branco como nos filmes da década de cinqüenta. Imediatamente olhei para a mulher. A cor dela estava normal.

─Acho que bebi demais, está tudo preto e branco, eu disse esperando uma explicação.

─Acho que é sua imaginação. Vejo tudo normal, disse ela fechando a porta.

Mal me refazia da surpresa eis que surge da bruma um menino. A cor dele também estava normal, mas sua veste me remeteu para um ambiente helênico, a Grécia antiga. Foi então que notei as colunas dóricas e os vasos com ornamentos gregos. Ele se aproximou se dirigindo à mulher. Parecia não me ver.

─Mamãe! Porque demorou tanto?

─A noite não estava fácil, filho!

─Quem é esse? Perguntou ele olhando-me dos pés à cabeça.

─É um amigo que precisa de ajuda. Volte para a cama que vou preparar um chá quente para ele!

Não tinha dúvida. Aquilo era um sonho, mas estava tão real. Estupefato com a decoração sai caminhando devagar pela ampla sala que mais parecia o átrio de um templo. As paredes brancas continham figuras humanas nuas, esculpidas em alto relevo. Eram de uma perfeição apolínea. Decidido a descobrir aquele mistério perguntei à mulher:

─Como é teu nome?

─Jocasta. Aquele é meu filho Édipo. Respondeu pondo a chaleira sobre as chamas do fogão.

─Édipo? Aquele que matou o próprio pai e se casou com a mãe?

─Não sei do que você esta falando, mas esses nomes foram dados por meu pai que era apaixonado por mitologia grega. Esse apartamento era dele. Eu achei bonita a decoração e deixei tudo do mesmo jeito.

─Mas tinha tantos outros nomes mais adequados para ele escolher e foi logo escolher o nome de um parricida e de uma mulher má. Você conhece toda a história mitológica de Sófocles?

─Não fui criada por meu pai. Quando nasci minha mãe morreu de parto e fui entregue a uma tia. Meu pai apareceu muitos anos depois, quando eu fiquei viúva. Passamos a morar juntos e o resultado foi esse filho que você viu.

─ Então ele é seu filho e seu irmão!

─ Isso mesmo.

─ E por onde seu pai?

─ Ele morreu assim que o Édipo nasceu. Minha tia, já velhinha ficou horrorizada com a história e rogou uma praga. Você amaldiçoou a família, vai pagar caro por isso! Gritou para meu pai quando veio visitar o recém-nascido. No dia seguinte começou uma coceira na pele dele e em pouco tempo morreu. Era câncer de pele.

─ Mas porque lhe batizou com o nome de Jocasta?

─ Minha tia me contou que ele adorava as tragédias gregas. Conhecia a Odisséia de cabo a rabo, mas essa de Sófocles era a que ele mais gostava. Minha tia contou também que ele fora criado por uma irmã, que fora rejeitado pela mãe por haver nascido coxo. Mesmo aleijado estudou nos melhores colégios de João Pessoa e se tornou um engenheiro famoso. Abriu uma empresa de construção e ganhou muito dinheiro vendendo imóveis para os políticos e empresários do estado. Acho que o chá já está pronto.

A bruma havia se dissipado completamente, de modo que pude ver com mais detalhes a estonteante beleza daquela estranha mulher. Percebi discretamente que ela manquitolava e imaginei o pai dela caminhando naquele ladrilho com a mesma deficiência. Porém tal fato não diminuiu minha excitação quando ela se aproximou com a xícara de chá. O olhar dela penetrou no fundo de minha alma, devassando-me completamente o interior. Senti-me como um viciado tendo a sacola revistada por um policial militar. No mesmo instante imaginei seu olhar transformado em uma serpente depositando seus ovos dentro de mim. Com o calor do meu sangue os ovos se partiram e em vez de larvas reptilizantes surgiram milhares de mariposas colorindo todo o ambiente. O chá quente assanhou ainda mais as borboletas que passaram a comprimir para fora de mim o sangue que se concentrara em um único ponto. (Modo poético de descrever o inicio de uma ereção). Como um imã meu corpo a atraiu com tal força que a xícara voou se despedaçando no assoalho com um som musical. Rolamos sobre o sofá como dois adolescentes loucamente apaixonados quando de repente um grito rompeu na madrugada.

─ Filho da Puta! Vou acabar com você!

Assustado empurrei Jocasta e me pus em guarda. Na minha frente estava Édipo com uma espada na mão e uma expressão de raiva na face. O drama de Sófocles parecia querer se repetir. Não havia dúvida que ele estava com ciúmes da mãe. Sendo filho de um incesto pensei que aquele menino não devesse ter uma noção exata da realidade, ou seja, seria um deficiente mental. Olhei rapidamente para Jocasta e fiquei estarrecido: ela começou a rir. Primeiro um risinho baixo, como o guinchar de um rato, depois o riso foi aumentando. Por fim estava gargalhando enquanto o filho continua apontado a espada para mim. Meu Deus! Estou entre loucos! Antes que terminasse tão terrível conclusão vi-me jogado sobre o sofá, completamente dominado. Sentia o copo todo dormente.

─ Não tenha medo. O chá que tomou não lhe deixará sentir dor!

Disse Jocasta cada vez mais enlouquecida. A bruma tinha voltado muito mais intensa. No meio dela vislumbrei o brilho do aço da espada acima da minha cabeça. No último esforço para escapar da morte reuni todas as minhas forças e gritei:

─ Socoooooooorro!

A voz do vigia soou como a voz de um anjo:

─ Hei rapaz é perigoso dormir por aqui.

henrique ponttopidan
Enviado por henrique ponttopidan em 26/04/2019
Código do texto: T6633052
Classificação de conteúdo: seguro