FELINAS NA CHUVA

Márcia possui em sua perna a tatuagem da cabeça de uma loba. Márcia saiu de casa usando short e a chuva pegou as duas felinas no caminho, dentro do ônibus para a casa. Já chove há tantas horas e a tatuagem, do seu azul profundo, parece encarar Márcia, viúva com 25 anos. Ela nem percebe e começa a rezar baixinho: “Pai nosso que estai no céu...santificado seja vosso nome...”.

Há uma clareira de possibilidades no céu. A loba poderia mirá-lo do seu azul profundo, mas a viúva sofre com todas as possibilidades:

“Naquela noite antes de Carlos sair eu poderia ter olhado o seu rosto. Eu deveria ter olhado para protegê-lo porque foi a voz de Carlos que saiu e voz não sabe se defender... voz quando sai parece dizer apenas que agora está tudo livre. O corpo não admirado por você, agora é meu”.

Naquele sábado foi a mãe de Márcia que acordou Carlos para avisar da falta de pão e leite em casa e isto desanimou Carlos, que quis sair para comprar pão na padaria e a convidou para irem juntos. Ela entrou na padaria, mas trazia algo triste. Era um sábado lindo de sol... ainda assim ela engolia uma tristeza e reclamava do estado das coisas, do comportamento do marido. Os dois voltaram e enquanto Carlos se justificava, ela estava no meio de outra avalanche. Foi assim o dia inteiro, mesmo durante a faxina em casa que precisava ser feita, mesmo ali não foi possível evitar o ponto da dobra. "A dobra é o momento em que tudo desanda e nenhum gesto pode mais evitar o incidente fatal do fim da noite". Ela ouve do quarto o marido dizer:

- Márcia, volto quando você parar de rosnar!.

Carlos antes ajudara na faxina de casa, até decidiu ampliar a limpeza passando nos cantos da pia uma antiga escova de dentes com detergente.

- Não se usa escova de dentes, Carlos!

- Me avisa quando eu acertar alguma coisa?

Márcia se lembra desta resposta e arregala os olhos ao ver um gato sendo levado pela enchente na rua. “A noite ele saiu decidido a voltar morto... a culpa é toda minha. Um dia inteiro de discussões”

Márcia vê ainda a passagem do corpo de um cão e pensa: “Os dois bichos são tão felinos quanto Carlos e eu”.

Naquele domingo foi a sogra de Márcia que ligou avisando do latrocínio. A polícia alegou que a morte de Carlos aconteceu porque tentaram roubar o seu celular.

"Por isso dava apenas caixa-postal"´- pensa Márcia.

DO LIVRO:"CHUVAS NO JARDIM-BOTÂNICO"

Paulo Fontenelle de Araujo
Enviado por Paulo Fontenelle de Araujo em 23/02/2019
Reeditado em 28/12/2019
Código do texto: T6581883
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2019. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.