OS ESCRITOS DO ODIADO
Ele odiava e era odiado. Na vila onde morava sentia-se um leproso andando pela rua, todos o evitavam. Precisava sair dali, mas algo o prendia naquele lugar horrível, entre as montanhas de um canto de Minas Gerais que parecia perdido no tempo.
Sargento era seu cachorro fiel. Dormia com ele, almoçavam a mesma comida, acompanhava-o nas caçadas e no trabalho no pequeno sítio de dois alqueires que herdara do pai. O casebre era mal faxinado. Sujeira e falta de higiene. O odiado, já lhe chamavam assim, passava três a quatro dias sem se banhar. Caprichava um pouco quando dava um pulo até a cidade. Havia um velho ônibus apenas duas vezes por semana. Recebia sua aposentadoria e comprava poucas coisas. O necessário. Sua casa sem energia elétrica, sua água de uma mina próximo da sua morada.
Duas caixas de madeira, daquelas antigas, onde se guardava roupas. E servia de assento também. Em uma delas suas escassas peças, na outra os cadernos.
Nesses cadernos ele escrevia suas histórias arrancadas da sua desacreditada imaginação. Histórias que ninguém lia e ninguém era capaz de imaginar que ele conseguia tal proeza. Tinha sido alfabetizado até o terceiro ano quando pegou raiva da escola onde os outros garotos gostavam de tirar sarro da cara dele.
Mas leu a Bíblia toda, três vezes. Lia tudo que lhe chegava às mãos. Escrevia muito bem apesar dos tropeços na gramática. Escrevia pela tarde.
Houve uma noite, um bando de garotos drogados e a péssima ideia de colocar fogo na casa dele. Ele dormia. Desmaiou sufocado pela fumaça e morreu carbonizado. Quase tudo foi queimado, exceto a caixa de madeira com os cadernos. O cachorro ficou ali, farejando tudo e parecia vigiar o que pouco sobrou. Dormia sobre a caixa.
Lucas, um rapaz perspicaz, leitor voraz de histórias de fantasia, teve a curiosidade de pegar para si os cadernos do velho homem assassinado covardemente. O cão parecia não se opor, mas o acompanhou até a sua casa. Ele leu e entendeu que se tratava de histórias interessantes. Precisava trazer à tona o talento do homem mais odiado da vila. Com ajuda da secretaria de cultura, conseguiu publicar uma coletânea das histórias mais interessantes. Foi até às escolas, deu entrevista na rádio comunitária, postou em suas redes sociais e atraiu um pequeno público para a noite de autógrafo.
No lançamento do livro, Os Escritos Do Odiado, enquanto o rapaz responsável a dar luz a aquelas histórias falava do seu encanto pela primeira vez que leu os manuscritos, Sargento, com seu corpo magricelo, entrou no recinto.
Lucas esbanjava orgulho e alguma timidez perante o público atencioso. Sargento foi se acomodando ao lado do jovem. Enquanto o nome do velho era lembrado, o corpo do cachorro foi ganhando massa muscular e mudando sua morfologia.
Ninguém percebeu o início da transformação, foi um garoto que nem estava prestando atenção nas palavras do rapaz que achou estranho o cão se transformando em um homem. Gritou e então passaram a perceber. Lucas olhou de lado e viu a transformação acontecendo. Ficou atônito, boquiaberto. O animal tomou a forma do homem, o autor das histórias contidas naquele livro. Boa parte dos presentes, apavorados, diante do corpo do homem já tido como morto saiu correndo e se acotovelando na porta do salão. Os poucos que ficaram viram o homem pegar o microfone da mão do rapaz que, assim que se viu livre do objeto, caiu no chão, desmaiou. O homem odiado se apresentou e pediu para que ninguém se assustasse. Ele não havia morrido no incêndio. Esperava o momento certo para voltar a ser humano. Quem estava no corpo humano carbonizado naquela noite criminosa era o do seu único e fiel amigo, o cachorro, que trocou de alma com ele. Nem ele sabe como isso aconteceu.
Quando a polícia chegou, juntamente com os socorristas, o homem calmamente explicou para os policiais. Não havia o porquê prendê-lo. Nem mesmo pelas mortes misteriosas dos cinco delinquentes que atearam fogo naquele casebre, e que não foram presos por serem filhos de famílias influentes.