A VISITA
Numa meia-noite, insone, agonizava em sono arrebatado e inconcluso. O olho arregalado, aberto como crateras, procurando repousar nalgum recôndito escuro do quarto, sofrendo como um condenado no corredor da morte, a angústia da última noite.
Ouvi então o bater da porta. Batidas insistentes, tão fortes, que pareciam ser de cem pessoas em desesperada aflição.
“Uma visita tardia pede entrada em meus umbrais. É só isto, e nada mais".
Tentei dormir, mas as batidas batiam e insistiam cada vez mais fortes e mais fortes. Aborrecido pela insônia que já me perdurava por meses sem fim, levantei tropeçando nas coisas, caindo nos vãos escuros, nos abismos ancestrais das escadas.
Há alguém que não quer que eu durma.
“É só isso e nada mais”.
As batidas pareciam-me que iriam por a porta abaixo. Provavelmente, tinha acontecido alguma tragédia e viam-me avisar, por certo, pensei. Talvez um incêndio no prédio e tinham me vindo acudir, com certeza, imaginei.
Batiam mais ainda, quanto mais eu me aproximava da porta, mais batiam.
Abri a porta e, antes de qualquer coisa, entrou intrépido, um vento gélido e cortante como navalha, fazendo tremer até as estátuas nuas.
A porta aberta. As batidas cessaram e a noite ainda perdurava lá fora, tão escura como a alma dos demônios. Demorei os olhos a vislumbrar a figura que me batia à porta. Era um velho. Senti um odor nauseabundo e pus a mão no nariz. O velho sorriu-me.
Aos poucos - isto em segundos que pareciam centenas de horas - comecei então a visualizar o estranho e inconveniente visitante. Trajava um paletó surrado, descolorido, amarrotado. A barba pro fazer, desleixada. O bigode de cor amarelada, com certeza pelo uso de tabaco. Exalava dele um odor mal cheiroso de sujeira, um misto de bebida barata, cigarro e suor, que me causou asco. Ele sorriu mostrando os dentes amarelados, mal cuidados. Deixando escapar um mau hálito repugnante, falou com uma voz penetrante:
- Precisa me convidar para entrar.
Assenti com a cabeça e ele adentrou lépido, sem cerimônia, refestelando-se em minha poltrona predileta, na sala.
- Eu o ouvi gritar e gemer, por isso, eu vim o mais rápido que pude. Não vai me servir uma bebida?
- Não gritei nem gemi ou coisa que o valha! Estava tentando dormir. – confrontei-o, enquanto enchia um copo do meu melhor vinho.
- Exatamente isso. – Disse o velho, saboreando a bebida.
- Sua insônia me estava incomodando. Os seus pensamentos desencontrados, os pesadelos inquietantes e os anseios psicóticos são para mim como o mel para as abelhas. – o velho estendeu a mão para pegar mais vinho.
- O senhor deve ser louco! – bradei, sentindo-me insultado.
- Certamente, de loucura entendo eu muito bem. De qualquer forma, volte a tentar dormir, apazígue seu sono e pare de pensar em coisas antigas. Não te entregues à mágoa vã.
O velho encheu outra vez o copo.
- Aliás, o senhor que deveria estar dormindo. Afinal, quem é mesmo o senhor?
Então, o velho ficou de pé, contra o azedume da noite, a face branca descorada, o pescoço ceifado, os lábios exangues, o olhar faiscante que tudo perscrutam e os dedos crispados, tal e qual Heathcliff.
- MEU NOME É RANCOR. E O RANCOR NUNCA DORME.