FÉ E MARIMBONDOS
A História é um conjunto de acontecimentos que poderiam ser evitados.
Pois bem...
Sábado passado eu estava em São Paulo e fui convidado a um churrasco de parentes e amigos numa chácara perto de Elias Fausto, cidade próxima a Indaiatuba.
Boa cerveja, boa carne, boa comida e música ao vivo razoável.
Para civilizar as conversas, o anfitrião colocou um aviso bem humorado perto da churrasqueira:
“Pedimos não falar de política, religião e outras tristezas”.
Mesmo assim, procurei ficar longe de pessoas furiosas.
Sentei-me à mesa de conhecidos que falavam de Mato Grosso, do Pantanal e das suas maravilhas.
O papo delimitou-se por geografia e ficou a dançar acerca do maravilhoso Pantanal, seus bichos, suas tradições, comidas, cultura e crenças.
Em alguns momentos calávamos para mastigar carne, mandioca e beber cerveja.
Muita cerveja...
A vista, a uma distância de uns vinte metros, um pé de manga reinava cheio de frutos verdes, com a molecada ciscando em volta a procura de alguma manga madura.
Na ponta de um galho, na altura de um homem comum, havia uma caixa de marimbondos, com seus milicianos armados de ferrão em alvoroço à proteger o rei ou a rainha de um possível ataque.
Aquilo chamou a atenção do nosso grupo e comentamos o perigo que corriam os meninos e meninas, e também nós, que estávamos suficientemente perto para sermos atacados pelas abelhas.
Então, um senhor que não conheço e que dividia conosco o ágape, identificou-se como natural do Pantanal e explicou que lá no sertão das maravilhas o fato era corriqueiro e não constituía problema.
“Como não ?” – indagou alguém do grupo.
“Lá onde eu moro sempre aparecem caixas de maribondos perto das pessoas e suas moradias.” – explicou o estranho homem; –
“ Para resolver o problema fazemos uso de mandinga e reza que abençoa as vespas e os homens. Acalmados pela fé podem ser removidas com a caixa e tudo para outro lugar tranqüilo, onde não corram riscos e nem ataquem ninguém.”
Joãozinho Boa Pinta ouvia com atenção, e a afirmação do estranho multiplicou-se pelo teor de álcool que havia consumido.
Nascido no Pantanal, o tema lhe fascinava:
“Acredito nisso ! É muito falado por lá. Qualquer pessoa batizada e de fé, se devidamente benta, é capaz de tirar do lugar uma caixa de maribondos, sem que eles o ataquem, e levá-la para lugar seguro. Tem muito disso por lá...”.
“Se você tem fé suficiente, eu o abençoarei agora !” – disse o estranho pastor da crença.
Joãozinho Boa Pinta topou o desafio.
Levantou-se com certa dificuldade para se manter firme e equilibrado em pé.
Com a face vermelha, olhos brilhantes, febris do álcool, bateu no peito:
“Então... é para agora ! O momento é propício. Estou pronto para pegar nessa caixa de abelhas com as mãos e levá-la para longe.”
Enchemos os copos para mais uma rodada de cerveja.
O homem estranho colocou-se também em pé e achou necessário explicar:
“Primeiro, o homem de fé tem lembrar-se de Santa Rita.
Buscar na memória a sua imagem e crer que a doçura da Santa para com os homens e os animais é suficiente para realizar milagres.
Santa Rita, quando criança de berço, vivia cercada de abelhas, que pousavam em sua face, entravam pelos orifícios do seu nariz e colocavam mel na sua boca.
Quando foi para o mosteiro em Cássia, seu quarto era rodeado pelas abelhas, suas protetoras e companheiras.
Achei que o estranho pantaneiro havia bebido muito...
A despeito de sua voz pouco firme, pediu que todos se levantassem e orassem com ele:
SANTA RITA,
ENSINA-NOS A AMAR E AGRADECER A DEUS POR TODA A CRIAÇÃO.
AJUDE-NOS A ESTAR SEMPRE EM SINTONIA COM A NATUREZA,
PARA RECEBER DAS CRIATURAS DE DEUS.
Joãozinho Boa Pinta repetiu compenetrado palavra por palavra.
Em seguida pantaneiro recolheu um pouco de terra com as mãos e soprou-a para fazer voar os restos de folhas e matérias orgânicas.
Colocou aquela areia na mão esquerda do meu incauto amigo embriagado.
O pantaneiro pegou-o pela mão direita e conduziu-o até onde em paz e alerta, estabelecera-se a caixa com as vespas.
No pausado caminhar ia a declamar uma reza estranha que terminava sempre com o mantra “abarece câmara, abarece camara, abarece câmara,...”; pelo menos assim me pareceu.
Ao lado e ao alcance da morada dos marimbondos pediu ao meu amigo Joãozinho Boa Pinta, repetir com ele:
"Compadecei-vos, Senhor,
de todos aqueles que sabeis serem vossos,
por sua fé, esperança e boas obras.
Amansai, Ó Senhor, a ira dos raivosos.
Preservai a pureza das coisas,
e não permita que vosso servidor Joãozinho
(nesse momento ele havia parado a benção e perguntado o nome da vítima)
sofra qualquer investida das abelhas guerreiras.
Amém."
Repetimos amém também.
Surpreendia todos que aquele estranho Pantaneiro e seu discípulo Joãozinho Boa Pinta conseguissem manter-se em pé com tanta cachaça no sangue.
Mas a fé é tudo; até remove montanhas.
Por segurança o pastor dos marimbondos deu alguns passos para trás.
Pediu ao seu discípulo que lançasse o punhado de terra na caixa de vespas e que em seguida a segurasse com os dedos da mão direita, do mesmo modo que faria para trocar uma lâmpada queimada.
E dessa maneira aconteceu...
Por alguns instantes, no momento em que Joãozinho segurou a caixa, os maribondos abstiveram-se de manifestação.
Creio que incrédulos demais para reagirem.
Devem ter imaginado, pois o ocorrido me deu a certeza de que maribondos também imaginam, que era muita insanidade para ser verdade.
E nesse instante, breve mas maravilhoso, a observar Boa Pinta, confiante, iluminado, postura ereta, a segurar com a mão direita a caixa negra de marimbondos, convenci-me que toda ação do homem neste mundo é produto da fé.
Foi belo enquanto durou, criador e criaturas aliados pela paz.
O que veio a seguir foi um “Deus nos acuda !”,
com crianças, mulheres e homens, sãos e bêbados,
a correr para todo lado, em pandemônio,
derrubando mesas e cadeiras.
Nosso amigo Boa Pinta no centro da hecatombe,
a saracotear-se rodeado de vespas descrentes e furiosas,
a gritar
“Ai, ai, ai, Senhor meu Deus !”.
O pastor pantaneiro escafedeu-se.
Boa Pinta foi levado às pressas ao ponto socorro, providência que segundo a maioria, salvou-lhe a vida.
À noite liguei para a sua mulher para saber se ele estava bem.
“Bem, bem, não está... Tem as mãos tão inchadas que não consegue nem segurar o talher para comer. E já o avise que nem ouse ir ao banheiro. Não me casei com ele para limpar a bunda de bêbado”.
Respondi a ela que infelizmente o momento político não era próprio para confiar nas vespas para mudar as coisas.
Que nessas festas, regadas à euforia, tornamo-nos pessoas simples e com sentimentos exagerados.
Convocados por falso profeta, não conhecemos nem a dúvida e nem a incerteza."
Creio que ela não me entendeu ...
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Obrigado pela leitura.
Sajob, outubro 2015 + 3