O HOMEM QUE SE NEGOU A FALAR



Espécie: Homo sapiens. Nome: João Patriota. Religião: cósmica. Divagações: a palavra pensada é contaminada e a polícia do pensamento a reprime a todos os momentos. Os homens emudecem para se tornarem entendidos.
Nem mudo nem palrador, simplesmente articulador natural de frases, orações soltas e elucubrações.
Não foi levado a um tribunal, nem sequer cometeu o crime da oratória. Algumas subversões, sim. Crime de lesa-pátria nunca: sempre manteve o amor por ela, mesmo tendo vivido uma década áurea sob a beleza gélida do Canadá.
Ele havia decidido que a verbalização o tinha subvertido. As vaidades da juventude, os movimentos estudantis, as ideias românticas sugeridas por um socialismo distante e o fascínio pelas tropas enfileiradas que remetiam ao sonho de combater num determinado front, faziam burburinho. Dois heróis: Che Guevara e Napoleão. Nos momentos de balbúrdia até Lampião chafurdava em sua mente.
Questionado por quem ele se decidiria entre um aprendiz de comunista e um suposto torturador, apenas ficou afônico, como se tivesse perdido o dom da palavra.
O escrutínio é secreto, garante a lei, argumentou.
Não. Estamos em tempos modernos. A constituição resgatou o voto declarado.
Emburrecido, deixou-se ficar taciturno num canto da sala. Decidiu não mais falar, mesmo que a privação oral comprometesse sua sobrevivência.
Joel de Sá
Enviado por Joel de Sá em 23/10/2018
Reeditado em 23/10/2018
Código do texto: T6484242
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