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[...] Então, o portão de ouro reluzente não existe. Já varri todo o solo de nuvem em que ele possa estar espetado, não o vi. Talvez eu tenha vindo sem aquilo que seja preciso para vê-lo - como é impossível para um cego entender um arco-íris. Mas é como se eu fosse um balão preso a um cordão umbilical que me fornece tantos infinitos de hélio. O cordão em si também é tão longo que não sei se começa na terra, ou no mar de lava debaixo dela, ou nas criaturas debaixo das ondas alaranjadas. Não sei disso. Mas é a única coisa que não sei. Agora tenho aquilo que a Hilda chamava de Lucidez Obscena. Não posso possuir nenhum corpo - mas sei do que são feitas as veias de todos, as seivas das árvores, a fome das larvas.
Não houve anjo que me apresentasse meu aposentos. Acho que agora todos foram retirados do cargo e foram substituídos por essa consciência que ganhei assim que fui declarada morta nesse nosso planetinha redondo. Agora tão pequeno que eu posso engoli-lo. Poderia ser um pedaço de poeira no meu quarto, eu nem saberia.
Foi uma morte besta, não foi? Sempre tive medo de ter uma morte besta como a que tive. Acho que os heróis televisivos conseguiram banalizar até a morte. Até o amor. Tinha que ser uma morte fruto de luta, pelo menos: com os outros, consigo mesmo, tanto faz. Tinha que ser um amor ou muito difícil ou muito fácil. Mas a minha não foi nada disso. Claro, eu estava em desvantagem em relação à bala de chumbo brilhante, mas nem fui o motivo dela ser disparada. Foi apenas um menino brincando com a arma do pai, a fim de saber o que é esse tal de poder que dá frio na barriga. Uma bala perdida, encontrada em mim. Rasgou uma artéria. Espero que o menino esteja feliz agora. É um herói televisivo, de qualquer forma. Matou sem vontade de matar. Brincando. Talvez seja Deus, esse menino. Às vezes eu me encontrava ali no caminho da bala justamente por Deus estar brincando. Talvez eu tenha sido uma pecinha que caiu sobre o tabuleiro. Ou aquela que se perdeu e alguém substituiu por um botão.
Eu conheço esse menino melhor, agora, morta. Não teria sabido nada sobre ele se não tivesse na (falta de) mira dele. Sei que escondeu a arma debaixo de um vão apertado da mesinha ao lado da cama do seu pai. Sei que gostou do barulho, que fechou os olhos quando disparou o tiro. Acho que tem a fraca sensação de que agora é dono de uma morte. Dono da vida de uma pessoa. É como um personagem de jogo que ganhou pontos. Cai sobre ele a gravidade da vida. Da vida alheia, aquela que a gente nunca toca. A gente acha que sim, mas não, nunca toca. Compartilhar histórias, garrafas de vinho, filhos, sexo animal, não é nada. Nunca saberemos o que é ter uma certidão que não é a nossa.
Sabe, eu quase acreditei nisso aquela vez quando você veio em casa e me ouviu ler poemas do Alberto Caeiro. Eu estava triste, de cabelo sujo colocado pra cima, com uma camisa com manchas variadas. Falamos sobre morte, aquele dia, se lembra? Você disse que não pensava muito nisso. E agora, pensa mais sobre a minha morte do que sobre a sua. Sente-se imortal frente a ela, de algum jeito.
Sei que recebeu a notícia pelo WhatsApp, olha que idiotice. Achou que era brincadeira, apesar de imediatamente ter começado a suar frio e o seu coração de passarinho ter disparado . Ligou de volta para quem tinha lhe contado, incrédulo, caiu sobre a cadeira na escrivaninha em prantos.
Foi ao velório, abraçou apertado a minha mãe. Gastou o salário de um mês em flores - flores cujo aroma nunca vou sentir, ou cujas pétalas nunca vão ser arrancadas numa brincadeira de bem-me-quer-mal-me-quer - que eu faria provavelmente pensando em você. Foi um presente mais pra você do que pra mim, sabe. Todo o velório é dedicado à família e amigos, não ao morto. É um ritual de passagem dedicado àqueles que não passaram pra lugar nenhum.
Não chegou perto do caixão. Se pudesse ter um último desejo, escolheria ter um caixão fechado. Ou que a bala estivesse arrancado meu rosto fora. Essa é a vez em que a última impressão é a que fica. E vai ficar, como trauma, naqueles que amo. Eu, branca, em roupas formais que não usaria porque nunca fui formal, sem sorriso ou olhar, fria, o sangue parado nas veias como um rio que seca.
Mas acontece que essa consciência súbita me faz ser grata, apenas. Grata por ela mesma, inclusive. Grata por eu ter agora o acesso a todas as realidades possíveis. Gostaria muito de ter te dito como é isso. Que nosso planetinha é nada. É um orvalho numa flor. Acho que teria te feito bem.
Agora não são mais ruas ou trajeto de ônibus que percorro. Existe um caminho cravejado de estrelas mortas que sustentam meu peso - percebi que também sou uma delas. Os universos são como buracos brilhantes que se enfileiram ao lado desses caminhos suspensos no nada. Vou passando de casa em casa como um político dedicado à sua imagem. Existem lugares sem essas palavras nas quais escrevo essa carta. Ganhei a capacidade de falar todos esses idiomas, como uma certidão de morta. Não tenho mais corpo que preencha espaço. O meu ficou naquele cemitério sujo da nossa cidade. Eu entendo tudo num entendimento que nunca pode ser expresso num papel. Nem em palestra. Nem em filme. Nem em poema. É infinito. [...]
Conto escrito para o Tema Infinito do Desafio de Contos promovido pelo projeto de Escrita Criativa da UEL