Desorgânico

A angústia corta fundo na base do crânio, firma uma fenda seca que estende-se de orelha e orelha e deixa-se se infiltrada por melancolia incessante que transpassa a espinha e irradia-se assim, tão friamente, por cada célula e perscruta cada pequena ação como um eco sombrio que surge do fundo da alma para colocar a hesitação como pós-imagem errante da minha existência. Sinto o coração bater, ondas de melancolia agitando os músculos e perturbando-me a alma mais até do que um barco à deriva nos mares tempestuosos do Atlântico. Acordo, sinto a vibração da tristeza alterar-me o ritmo. Ando, sinto a mesma vibração a me perturbar. Durmo e em vez de parar nos braços de Morfeu, encontro-me transfigurado em reles marionete dos senhores dos submundos de todas as religiões e da mediocridade que é o inferno de minhas descrenças. Preciso de um motor primordial, um impulso primeiro que coloque-me em movimento, algo que puxe as cordas e faça minhas peças uma vez mais funcionarem, mas tudo o que restou foi o clamor arrepiante que uma voz profunda em minha mente repete de forma incessante como que digladiando com um desespero louco já instalado parasiticamente na estrutura da minha identidade.

Se paro e ouço bem, percebo que não há briga, não há ninguém se digladiando. Meu eu não mais luta, aceita o desespero como um convidado honrado que de tempos em tempos visita e agora veio para ficar. Tento bater o pé, grito nas paredes dos meus pulmões que esse espírito tem dono e não cede, mas tão logo faço isso dou-me por mim e, enfim, noto que talvez já não haja mais um limite definível entre eu e angústia, há somente nuances de duas coisas outrora separadas agora condensadas numa existência simbiótica em que um não somente se alimenta do outro, mas também alimenta-se pelo outro. O que há além do desespero já não importa mais, meu próprio microcosmos deixou-se absorver e transformar-se em algo tão novo e fresco que beira ser uma imoralidade existencial. Vez ou outra escuto os ossos rangerem de maneira mecânica, uma orquestra tão bem ritmada que espanta-me, por isso imagino como seria se pudesse vê-los, pudesse sentir a constituição e ser somente uma estrutura de sustentação sem precisar encontrar algo pelo qual sustentar-se, apenas assim permanecer. Dizem que a monogamia é boa, o amor salva e o altruísmo é o valor fundamental da humanidade, mas que se danem as pessoas, todos fingem ser cegos e fazem unicamente o que os levará a convencerem-se de que de alguma forma atingiram algum tipo de sucesso e satisfação, convencer é fundamental e pro inferno com a honestidade. Somos todos caricaturas de nós mesmos dançando sem fim, mergulhamo-nos no jogo cruel que é a sociedade e cada um leva consigo as máscaras necessárias para convencer quem que seja do que quer que seja, pro inferno com a honestidade.