A SOLIDÃO A DOIS
“Hoje posso sentir-me livre”, disse Marcos Olevic aos amigos e companheiros que o ouviam atentos, “mesmo lamentando o esforço desmedido, à custa de lágrimas derramadas nos litígios dos tribunais, porque foram elas que me encaminharam para a superação do terrorismo psicológico, da dissimulação, da angústia acumulada e romperam os alicerces da mediocridade, da vida vivida pela metade. Vejam bem... Ainda não sei se um dia voltarei a viver por inteiro ou, ao menos, sonhar com essa possibilidade. A questão é que fui muito além do suportável. Para não ventilar irresponsabilidades de intolerância, protelei um relacionamento falido e identificado ainda nos primeiros meses de casamento e, por estupidez ou falta de iniciativa, deixei que se estendesse por mais de vinte anos. Hoje, confesso que me sinto livre desse cárcere privado. Faço esse desabafo para que outros não vivam, até mesmo por covardia, a solidão a dois.”
Após o desabafo, tomou fôlego. Olhou à sua volta para formar com lógica as palavras seguintes, tendo a preocupação de ficar ereto. Assim fez para se convencer de que era justa e bem pensada a sua eloqüente e dramática iniciativa, que justificava o sentimento de culpa durante tão constrangedora peleja judicial. Por um momento fechou seus olhos. Teve uma leve vertigem e alguém mais próximo tentou socorrer-lhe, no que foi imediatamente impedido com gestos de quem diz: “está tudo bem”, obviamente não estava. O que estava em xeque era o orgulho ferido daquele homem cujo corpo fora maltratado pela doença.Visualizemos pois sua fantasmagórica pessoa que buscava equilibrar-se com a única ajuda de sua aceitação, que era sua bengala, recém-comprada, como se fosse a melhor batalha de seus dias.
Façamos o seguinte: deixemos por alguns segundos a pessoa de Marcus Olevic, o qual será a base e tônica desse registro e anotaremos, primeiramente, o impacto de seu discurso.
Vamos então examinar a multidão, olhando todas as dimensões. Muito bem! O resultado podemos assim descrever: do lado direito de Marcus estão agrupados (com a impressão de comum acordo ou quem sabe mera coincidência), a maioria de homens. Do lado esquerdo; é claro, estão as mulheres. É nítida então a divisão em dois grupos. Detemo-nos, todavia na figura de uma pessoa em especial ainda totalmente estranha. Sobretudo não alheia às circunstâncias do momento, já que é visível em seu semblante o fascínio jamais sentido, porque causado pela verve de Marcus Olevic. Por isso amigos(as), fiquemos atentos para solidificarmos os próximos capítulos dessa novela da vida real. Pegaremos a partir de agora uma carona, objetivando usar a visão e a prática profissional desse personagem numa peça fundamental para a construção da verdade.
André Teru, ( ficaremos satisfeitos no momento em saber seu nome), um jornalista em busca do melhor furo jornalístico, mirou bem a figura impressionante de Marcus e pensou, após observar atentamente a reação da massa: “ Ah! Se fosse possível filmar, individualmente, o desfile de olhos inquiridores que se avolumaram saltitantes em desfile de cores e tamanhos nas máscaras expressivas de muitos rostos...” Atentos, sentiam em cada verso uma verdade bem vestida, pois era de convir que muitos também viviam um matrimônio sem os ingredientes indispensáveis. Ingredientes que alimentam, diariamente, uma união fortalecida de renováveis emoções
Ainda descrevendo com fidelidade a reação às palavras de Marcus, André percebe que de um modo geral os amigos mais chegados que o ouviam atentos, balançaram a cabeça e procuraram não tecer comentários naquele instante.Foi então que André resolveu mergulhar com profundidade em tudo aquilo que ainda lhe fugia do entendimento.“Claro!” Disse pousando seus olhos na figura de Letícia. Agora já começo a entender a razão da divisão das pessoas. Essa senhora é, sem dúvida, a outra parte envolvida na ótica de Marcus. Para me inteirar com maior propriedade e segurança, resolvi esgueirar-me por entre as mulheres. Fui abrindo caminho para melhor aproximar-me de Letícia.
Eu sentia um frenesi por ser o único repórter a estar cobrindo tal matéria. Mesmo sem saber onde estaria verdadeiramente o furo de reportagem, estava motivado e entusiasmado a cada registro de pequenos detalhes. Entre com licença aqui e pedidos de desculpas dali, finalmente me aproximei de Letícia. Ao contrário de Marcus, Letícia estava bem de saúde. Muito bem vestida, aliás. Conservada por demais em seus quarenta anos já completos. Era altiva, enérgica, e imediatamente - como quem quer adivinhar além do que vê - comecei a conjeturar sobre a incrível decisão por parte de Marcus que resolvido, decidido, tudo fez para se separar daquela mulher.Não quero fazer julgamento precipitado, mas nesse momento não tive sobre ela a melhor impressão. Posso, é claro, estar enganado. Porém mapeio o que vejo e registro sua postura arrogante e autoritária. Recuso-me a dizer que era feia. Isso seria uma heresia. Parecia ser uma figura dominadora. Alguns passos à sua frente, estavam os dois filhos do casal. Seus nomes, anotei em meu caderno: Laura, de 21 anos e Eduardo, de 16 anos. Pelo que apurei o casal de filhos não se conformava com o parecer favorável do juiz em homologar a separação, antes de ouvir a versão da mãe deles. Pensei com meus botões: “Que loucura! Pelo que vejo, cada um tem sua razão, ou será que ela é a única dona da verdade? Do jeito que ela fala... Eureka!”
Letícia tinha o desenho de um sorriso forçado e raramente acompanhado pelo esplendor dos olhos, no que deixava à mostra a desfaçatez, embora se esforçando para que o mesmo se vertesse radiante, natural e livre do escárnio. No entanto, o resultado conseguido era notadamente insignificante e sem brilho.
Letícia foi enfática ao dizer que estava decepcionada com tudo aquilo. Tinha plena certeza da morte de Marcus.Havia ensaiado a duras penas o momento do choro ao lado do caixão. Sentiu-se lesada com as mudanças dos acontecimentos.
— Bastava olhar o seu estado decrépito de alguns dias atrás, para se ter a certeza de que não haveria um milagre que fizesse Marcus, meu marido, escapar com vida!
Enganou-se.Estava frustrada com isso. Há muito se sentia viúva e, sem qualquer constrangimento, já havia feito planos com o salário integral da pensão.Disse um tanto chorosa:
— Eu tive que suportar seu mau-humor, suas pedradas, e ele ainda sai ganhando? Isso não é justo!
Discursava para as amigas e parceiras dos freqüentes compromissos dos dias em que o ócio esticava as suas horas. Era do conhecimento da maioria das pessoas ali presentes que a verdade se vestia diferente, pois as madames emendavam todo o seu tempo em partidas de jogo de bridge. Faziam fofocas da vida alheia nos salões de cabeleireiros e nos intermináveis chás das dezesseis e trinta... As amigas a ouviam nesse instante sem emitir opiniões , quando surge uma voz que fala com todas as letras o que sente:
— O que aconteceu para Marcus não ter morrido foi um milagre...
— E milagre deixa todo mundo sem ação! Emendou Lola, que dentre as demais era, sem dúvida, a de postura mais equilibrada. Era esposa de Paulo, o melhor amigo de Marcus.
Despida de qualquer sentimento, Letícia mergulhou na sombra da pequenez e permitiu, simbolicamente, que a nudez da lua acariciasse por completo seu prazer insaciável de loucura. Olhou para Lola como se tivesse sido picada por uma cobra, dizendo:
—Você está defendendo esse verme, Lola? Só me faltava essa agora! Já basta o Paulo, seu marido, que mais parece um amante de Marcus, pois não desgruda dele para nada...Por acaso, vão oferecer um quartinho de despejo para aquele ingrato? Ele consumiu mais de vinte anos da minha juventude, e agora que não tenho mais a beleza que aos olhos contagiava, sou descartada, igual a um objeto sem utilidade.
Letícia foi falando e perdendo o controle. Em pouco tempo, até suas amigas inseparáveis deixaram-na falando sozinha. O casal de filhos alheio às intrigas e considerando que aquilo era um filme repetitivo na vida deles, observava isolado as peripécias da mãe e seu costumeiro histerismo. O pai, que não conseguia desvencilhar-se da postura e atitudes de advogado, utilizava-se da retórica para justificar seu ato.
Num passe de mágica e quebrando o ritmo dos acontecimentos, entra em cena Teodoro, um pseudo-amigo que vivia puxando o saco de Marcus para conseguir algumas benesses. Na verdade, estava de olho na posição que ocuparia, se porventura Marcus viesse a morrer ou se aposentasse. Quando se deparou com a impossibilidade de realizar sua intenção pela chama da vida - que em tempo algum esteve ausente na alma e no coração do colega de trabalho - interrompe o discurso de Marcus, que fazia uso da palavra, agora inibida pela invasão desse elemento cuja indigna intenção denunciava seu egoísmo.
—Eu joguei e perdi dez mil reais, num bolão que fizemos na empresa.Nele apostei, inclusive com a conivência da dona Letícia, que Marcus não comemoraria o Natal vindouro.
— Ganhei vinte mil, nessa mesma aposta que você perdeu, disse Paulo, aproveitando-se da deixa. Com isso, deu a espetada mais que certeira no indivíduo, que deixou escapar uma grande oportunidade de se manter calado, e bateu em retirada.
—Pelo jeito todos os que apostaram na minha morte não apenas perderam o lance, como também foram derrotados pelo objeto da ganância, disse Marcus com evidente satisfação.
—Cada qual à sua maneira está recebendo a punição que merece e, em seu devido tempo, terão a eternidade para se justificar, completou Paulo. Asseverou ainda:
— Por outro lado, se quisermos caçar os ratos que caminham entre nós, basta oferecer a eles um bom manjar. Não esquecendo, é claro, de deixar armada a melhor ratoeira.
Marcus satisfeito com a interferência de Paulo, sentiu-se aliviado e menos culpado pela decisão que lhe exigia aplicar cabíveis e exemplares punições. Nesse momento, as esposas de Paulo, de Miguel e de outros se aproximaram. Marcus limpou a garganta, aprumou-se o máximo que pôde com a ajuda e apoio da sua bengala, dizendo:
—Não quero que me vejam como espelho de vingança. Menos ainda como vítima de um encanto gratuito. Conheço a minha verdade. Talvez eu não tenha vivido como deveria, mas vivi o suficiente para saber que desejo o recomeço. Isso ninguém tem o direito de me tirar. Quero desfilar por entre os vivos sem a sombra da acusação. Não tive ainda, meus amigos, a oportunidade de conhecer o verdadeiro amor. E imagino, em minha insignificante interpretação, que podemos compará-lo sim ao amor verdadeiro. Queiram-me perdoar se pareço medíocre ao fazer uso dessa comparação, mais saibam que há muito venho refletindo sobre isso. Nessa minha humilde observação está solidificado - tal qual fundação primária - o alicerce de uma construção.Não se pode erguê-lo sem que se acrescente, na sua estrutura, os ingredientes indispensáveis que se homogeneízam mutuamente. São eles: a areia, o cimento, o ferro e a água. Obviamente esses elementos não terão qualquer valor, caso não esteja presente o carinho do profissional que tem por responsabilidade o compromisso de misturar na medida certa tais princípios ativos que, uma vez unidos, resistirão e se perpetuarão no tempo, como se fossem um só elemento, uma só harmonia. Quanto ao meu casamento, pouca coisa boa tenho para lembrar. Ele foi construído sem os elementos e os valores do exemplo citado.
Sem se preocupar com o alcance de suas palavras, Marcus deu por encerrada a conversa. Logo após, surgiram os tradicionais e falsos abraços e os não menos falsos tapinhas nas costas, bem como os formais apertos de mãos. Os olhos de Marcus, para um observador mais atento, estavam velados de melancolia. Mas ao cruzar com os olhos dos filhos, os seus mudaram espetacularmente, devido ao fato de que seus filhos, mesmo contra a vontade de Letícia, vieram dar um abraço apertado nele.
Percebi que Laura também estava com seus olhos azuis um pouco avermelhados, resultado das lágrimas derrubadas, como se a separação fosse algo abominável. Ela havia aprendido pelo que tomei conhecimento (e muito bem!) a se portar como a sua mãe, e nesse instante não pude deixar de observar que ela demonstrava fragilidade e indecisão. Ao sentir o abraço apertado do pai, não resistiu. Deitou seus olhos em um ponto abstrato e disse as palavras mágicas:
—Eu te amo, papai! Não nos abandone, está bem?
—Jamais farei isso, minha filha, respondeu convicto.Os olhos umedecidos pela cachoeira de emoções. O que sentia pelos filhos não se resumia apenas em um dedo de amor... “Era muito mais do que isso. Muito mais...”, pensou.
—Nos vemos por aí velho! Te cuida, ok?
Foram as palavras de Eduardo, seu filho caçula, com a postura característica dos adolescentes.Aos poucos, todos foram retornando às suas vidas. Eu ainda não me havia apresentado como jornalista. A não ser, digamos, o intruso que escolheram para descrever e registrar um capricho do destino. Justifico, assim, o que me levou a me misturar com a massa.
Vamos ao que interessa. Hoje, particularmente, fui em busca de matéria no Palácio do Governo. Decepcionei-me com a mesmice no Executivo e com os próprios colegas de profissão que se aglomeravam como lobos, disputando, ao mesmo tempo, uma matéria insignificante. Pensei: “São quase dezesseis horas, sexta-feira e estou com minha auto-estima em baixa...” Com esse raciocínio desanimador decidi seguir a pé, ao centro de Curitiba.
Imaginando ter tido mais uma semana infrutífera, deparei-me com uma multidão, bem em frente à Vara de Família. Nem dei bola. Fui cavoucando em minha mente a razão do desalento e do sentimento de fracasso profissional. Num repente, tal qual saindo da garganta de Homero, ouço palavras que me deixaram alerta. Foi um choque inicialmente. Imaginei-me até participando do tribunal de júri. Afinei a sintonia e ajustei-me ao ato presente. Retornando ao mundo dos psicologicamente ativos, fui ao encontro daquela voz que me dizia algo. Saí do meu estado de letargia e ao aprofundar-me naquele episódio, fiquei visivelmente interessado em saber o máximo possível. Principalmente sobre o que havia nas lembranças daquele homem, que nesse instante, caminhava a passos lentos ao seu novo destino, devido à fraqueza provocada pela recente enfermidade. Ele rejeitou, pela segunda vez naquele dia, a ajuda de alguém. Segurando com firmeza uma pasta na mão direita e a bengala na mão esquerda, Marcus foi vencendo o caminho de poucas quadras, onde havia alugado um modesto apartamento defronte ao Shopping Mueller. Enquanto caminhava, Marcus foi dominado por descobertas plausíveis da enfermidade.
— Sei que vou ficar mais algum tempo sob cuidados médicos. Mas quando eu me sentir melhor, vou querer meu emprego de volta!
Pensou convicto: “Ah! Se quero!” Riu-se por dentro, com medo de que alguém nas proximidades pressentisse sua divagação, que já quase assomava o exterior da sua fisionomia. Só em pensar nessa possibilidade, ficava arrepiado. Porém, que culpa tinha se o seu nome era trabalho? Seus estímulos? Os melhores livros! Estes sim lhe faziam companhia e transcendiam no tempo ao vencerem os mistérios fictícios da mente. Em contrapartida, abraçavam com ele todo o universo itinerante. Com esse propósito os pensamentos de Marcus foram-se construindo em metáforas. No ajunte de palavras, surgem maravilhas em seqüências: “Almas puras acariciam meu espírito em regozijo”. Sentia-se tal qual Átila, o poderoso e destemido general romano, que outrora empunhava sua espada de justiceiro e defendia seu povo com honra e glória. Efêmeras sensações energizavam suas células de sonhador.
Eu seguia Marcus de longe e não quis invadir a sua intimidade naquele momento, pois com certeza elas e os conflitos se cruzavam com o inventário das suas afirmações. Anotei seu endereço e, nos próximos dias, encontraria o melhor meio de me aproximar dele sem intrometer-me e, muito menos, invadir sua privacidade. Agora eu já tinha plena convicção de que, além de conseguir o furo de reportagem mais importante da minha vida, escreveria um livro de grande repercussão.
O tempo foi passando e continuei a fazer o exaustivo trabalho, inclusive de detetive, objetivando aproximar-me de Marcus. Mesmo num sábado, lá estava eu de plantão, defronte ao prédio em que ele residia, como já vinha fazendo há mais de trinta dias em frente ao seu apartamento. Dez horas da manhã, anotei a saída do médico. Quinze minutos após, Marcus apareceu no terraço. Estava com uma postura muito diferente da que eu, enquanto observador, vinha acompanhando. Ele estava tal qual em seus melhores dias, bem-vestido, traje de executivo, demonstrando na fisionomia uma alegria há muito não expressada.
__Bom dia, doutor Marcus!
Disse-lhe eu, quando o mesmo colocou seus pés na calçada que dava acesso à rua. Era a sua primeira aparição espontânea entre os vivos e sem a ajuda da sua bengala.
— Bom dia, jovem! Se mal lhe pergunte,eu o conheço de algum tribunal?
Perguntou-me sério, porém respeitoso.Quase lhe respondi sorrindo e lhe estendi a mão para o cumprimento imediatamente correspondido.
— Meu nome é André Terú, sou jornalista e o conheci em frente à Vara da Família, em uma sexta-feira; uns trinta dias atrás.
— Meu rapaz, aquele não foi um dia do qual posso orgulhar-me, disse Marcus, demonstrando que não queria voltar ao passado.
— Doutor Marcus! Tomei a liberdade de pesquisar sua notória carreira nos trâmites jurídicos. Constatei que a lisura com que o Sr. conduziu sua luta sem dolo é por demais inspiradora.
— O que quer dizer com isso, meu rapaz?
— Quero dizer que pretendo escrever um livro sobre sua vida, todavia não posso fazê-lo sem os pormenores das suas contribuições e o seu consentimento. Poderia até pesquisar, entrevistar pessoas de seu convívio, mas ao meu ver não teria o mesmo brilho que poderá ter com o seu testemunho.
— Não sei exatamente o que você quer de mim, meu rapaz, mas me sinto honrado em compartilhar no que for possível em seu trabalho. Para justificar a gentileza da sua paciência, da sua tolerância e da sua prudência, convido-o para me acompanhar ao Shopping. Lá, após acomodarmo-nos em local confortável, verei em que posso contribuir para sua tese literária.
—Será uma honra, doutor Marcus.
Seguimos em silêncio rumo ao local determinado e fui sentindo o meu coração em descompasso.Estava suficientemente feliz com a possibilidade apresentada. Faria tudo para me tornar merecedor das informações que receberia e as traduziria com a maior transparência possível. Fui assim divagando até que encontramos um local discreto e reservado, que se encaixava com as pretensões do Dr.Marcus.
Após sentir-se à vontade, Marcus perguntou-me:
— Por onde começamos, André?
— Começamos por fazer o pedido ao garçom, se não se importa!
— Claro, meu rapaz, o que sugere?
— Que tal um vinho para nos aquecermos um pouco nesse incrível clima curitibano?
— Não sou muito parceiro da bebida, todavia aceito a sua sugestão. Um cálice não me fará um ébrio. Ademais, o dia está realmente estimulante e propício.
— Agora, acho que já podemos seguir a linha do seu pensar, meu rapaz!
Peguei meu bloco de anotações para evitar redundâncias. Queria ser prático e objetivo em meu inquérito e perguntei sobre sua infância.Logo após, quis saber um pouco sobre a sua família. Sobre suas lembranças. Sobre suas aflições.
— Bem, André, nasci em Londrina, norte do Paraná em l.958, oriundo de uma família composta de mais dois irmãos. Eu sou o segundo. Abaixo de mim, tenho uma irmã. Somos de origem russa. Meus avós imigraram para o Brasil nos idos da Primeira Guerra. Meu pai e seus cinco irmãos nasceram todos em solo brasileiro. Na maior parte de suas vidas, foram agricultores de numa gleba. Essa terra, no decorrer dos anos, foi registrada como propriedade de assentamento legal, na comarca de Cascavel. Dos cinco irmãos que meu pai teve, ele foi o único que ingressou na Universidade às custas de muita dedicação, considerando que na época adentrar uma Universidade era um desafio. Teve que vir morar em Curitiba, onde se formou em Direito e com muito louvor.
Quando meu pai se casou, ele já tinha definido em sua vida que se dependesse dele, seus filhos - fossem quantos fossem - somente ingressariam no primeiro trabalho remunerado, quando estivessem preparados para seguir uma carreira profissionalmente definida e pudessem receber, em troca, o suficiente para constituir uma família. Algum tempo depois, conheceu na cidade de Londrina, norte do Paraná, a sua esposa e minha querida mãe. Que Deus a tenha! Foi nessa cidade que ele fez carreira.
Marcus tomou mais um gole de vinho e não me atrevi a interromper seu raciocínio. Após esse ligeiro intervalo deu seqüência à sua exposição.
— Vejamos, meu rapaz...Onde eu parei? Ah! Na intenção de meu pai de que seus filhos entrariam no mercado de trabalho com um mínimo de preparação que, na sua ótica, era concluir um curso universitário.Em seu devido tempo, meu irmão ingressou no curso de Jornalismo. Entretanto, já no primeiro ano do curso descobriu seu erro e, no ano seguinte, se propôs a cursar Direito. Neste curso, ele também não se ajustou. Somente no terceiro ano, quando eu passei no vestibular da Universidade Estadual de Londrina para o curso de Direito, ele ingressou em Economia. Formou-se dois anos após eu ter concluído o meu curso.
— Eu sempre fui dedicado, meu rapaz, para poder - com méritos - seguir os passos do meu pai. Meu pai sabia e, no terceiro ano, ele conseguiu um estágio para mim num grande escritório de advocacia. Era um estágio paralelo ao curso, para que na prática eu amadurecesse. Desejando que, após a conclusão do curso, eu já pudesse ingressar oficialmente no oráculo do saber, eu lia todos os livros que me auxiliassem na aquisição de uma performance de um grande líder. Com isso fui conquistando prestígio dentro da já bem conduzida carreira. Por vontade própria também, fiz cursos de pós-graduação, mestrado e doutorado.
— Perdoe-me por interromper seu raciocínio,doutor Marcus, mas no decorrer de sua narrativa, me ocorreu que em nenhum momento o senhor citou os corriqueiros e apaixonados romances, tão comuns na vida dos estudantes.
André, André...Queria pular essa parte, mas não posso fugir do passado por egoísmo.Eu amei com todas as minhas forças uma jovem colega do mesmo curso. No entanto, apesar das minhas boas intenções, sentia-me imaturo e despreparado para receber um não, caso eu a cortejasse.Minha timidez com as mulheres era tanta que até hoje me condeno por não ter falado para Janini, era esse seu nome, sobre meu amor por ela...Bem, meu rapaz, já que chegamos a esse pormenor, agora vamos até o fim.
Eu estava em regozijo e curioso, pois queria descobrir quando e onde ele havia conhecido Letícia, considerando que do seu amor platônico restou apenas os momentos de sobressaltos no coração. Agora, encorajado pela deixa do doutor Marcus, perguntei:
— A dona Letícia foi sua primeira namorada?
— Você, hem? Quer mesmo construir uma bela história de romance, sem as nuances dos tão sonhados clássicos...
— Bem, vamos lá! Depois que eu fiz todas as minhas especializações, objetivando seguir carreira no Direito, a empresa que já estava ramificada em mais de vinte cidades brasileiras, convidou-me para que eu assumisse um cargo em Curitiba com um salário de R$8.000,00(oito mil reais), na função de advogado tributarista. Não existiam, em minhas humildes reflexões, barreiras que impedissem aceitar tal dádiva. Mesmo porque o salário era mais do que o dobro daquele que estava recebendo. No momento certo, fiz as malas e rumei para a Capital. Fiquei desolado nos primeiros tempos, pois já não tinha, nos intervalos de ociosidade, o carinho dos amigos que havia deixado em Londrina. Em vez de curtir - como afirma o dito popular - as noites curitibanas, aprofundei-me ainda mais nos estudos. Os livros foram meus únicos aliados. Sentia falta e até necessidade de ter uma mulher ao meu lado, mas não vislumbrava um modelo ideal que se ajustasse ao meu jeito de ser... Numa certa ocasião fui convidado para uma festa na casa de um desembargador e lá fiquei deslumbrado com a moça que ele me apresentou como sendo sua filha.
— Dr Marcus Olevic, apresento-lhe com muito gosto minha filha, Letícia. Disse ele orgulhoso... Ela é a dona dessa festa. Hoje ela completa dezoito primaveras.
— Meus parabéns, senhorita! Estou encantado pelo convite e deslumbrado pela sua exuberante beleza!
— O prazer é meu, doutor Marcus...Aceita dançar comigo?Pode me chamar apenas de Letícia.
— Claro, senhorita...
Marcus riu, sem graça, da própria insegurança.
— Assim farei se você também me tratar por Marcus.
— Está bem, Marcus!
Disse ela.Depois riu com candura e me ofereceu os braços para a dança que iria mudar o sentido de minha vida. Na hora em que me despedi, meu coração já não era o mesmo. Saltitava de forma que, se caso eu não me cuidasse, sairia pela boca. Fui enlaçado pelo primeiro olhar. Um ano depois, estávamos casados. Três meses depois de oficializado o matrimônio, tivemos nossa primeira discussão. Na seqüência, tive plena certeza de que o inferno existe e se chama casamento (ao menos o meu). Letícia foi ao médico e descobriu que já estava grávida de dois meses. Com o passar dos dias, ela foi gradativamente apresentando visíveis mudanças em suas reações com freqüentes desvios no comportamento. Minha experiência não somava que as mulheres se transformam no período da gestação. Letícia passou a ficar dominadora, exigente. Tinha atitudes que em nada lembravam a doçura reconhecida e comemorada de antes
Na época, passei a levar para casa algum trabalho e também gostava de me manter atualizado com as novidades da lei. Com isso eu direcionava meus estudos até duas horas por dia, num quarto que provisoriamente transformei em escritório. Foram cada vez mais freqüentes as investidas de Letícia para que eu parasse com os meus estudos - que na verdade me mantinham atualizado profissionalmente - para ouvir os montes de asneiras que ela insistia que eu ouvisse. Faço aqui uma observação para justificar, em parte, as ações dela. Penso que não era na totalidade sua culpa tais insinuações e desapego, se for considerado que ela perdeu a mãe ainda em seus primeiros meses de vida e foi criada por babás que eram com freqüência substituídas. O pai vivia em viagens e participava de reuniões intermináveis, por isso Letícia foi criada tal qual rainha, sem jamais ter sido repreendida ou responsabilizada por atos impensados e pelos desmandos coléricos que cometia. Ademais, ela não se conformava porque havia ficado à tarde toda na casa de fulana e porque enquanto jogavam uma partida de bridge, sentiu enjôos horríveis e, sem se conter, vomitou sobre as cartas do baralho. Quando não era no jogo de bridge, era no salão do cabeleireiro ou em qualquer outro local que não fosse a própria casa.
Dois meses após o nascimento do nosso primeiro filho, continuou Marcus, ela já estava grávida novamente e perdeu a criança no sexto mês. Ficou em depressão e alegava que era minha culpa, que eu não era um marido exemplar. Os maridos das amigas, como ela sempre dizia, faziam tudo pelas esposas. Tive um aumento na empresa e meu salário passou de oito para dezesseis mil reais. Tal estímulo potencializou-me a comprar a casa dos sonhos. Na verdade, o apartamento dos sonhos. Comprei-o na planta e conforme ele era construído, fui acompanhando a colocação do carpete, dos sanitários, dos azulejos. Enfim, refugiava-me de todas as maneiras para fugir das investidas de Letícia, que era, a cada dia, mais fútil e indigesta. Eu, no entanto, esperava que, com a casa nova, nosso relacionamento melhorasse. Ledo engano. Letícia fazia de tudo para me tirar do sério e muitas vezes conseguiu. Até tentei me defender como bom orador que sempre fui, mas acabava optando pela renúncia.
Eu não suportava seu mau hálito. Não sei se sofria de gastroenterite! Credo! Ela chegava a cuspir em mim impropérios incoerentes na defesa de seu egoísmo sem fronteiras. Os poucos momentos de carinho vividos por nós aconteciam esporadicamente e eram como se fosse o cavalgar em uma boneca inflável a qual você tem a posse sem, contudo cristalizar o afeto. Quem me dera, pudesse eu - em Letícia - degustar do fogo que alimentou platonicamente Rubião pela dadivosa Sílvia, em Quincas Borba, de Machado de Assis! Muitos dos meus sonhos foram mal vividos. Tantos eram que às vezes eu me sentia carente e ela percebia o meu desejo repentino.Usava um recurso muito comum de sua parte. Ficava no banheiro tanto tempo que quando ela vinha para a cama, eu já estava no terceiro sono. De repente, passei a odiar tudo em Letícia. Até que o novo apartamento ficou pronto.
Nesse avanço da nossa vida, ela já havia feito mais dois abortos e estava em sua quinta gravidez, que redundou no nascimento do nosso filho Eduardo.
Mudamos para o apartamento e nos primeiros meses Letícia tornou-se mais razoável. Foi nessa época que comecei a reproduzir aquilo que ela fazia com freqüência e maestria. Passei a convidar alguns amigos mais próximos para jantares. Paulo e Lola foram os primeiros e eram os principais. No entanto, outros mais passaram a freqüentar minha casa até que o dinheiro passou a não mais acompanhar os gastos. Letícia, sem visão da realidade, jamais abriu mão de pelo menos três empregados na casa.
Recomeçaram as intrigas, os fuxicos, as indiretas. Eu como sempre optava por recolher-me ao escritório onde não foram poucas e nem raras às vezes em que amanheci abraçado a algum livro.
Nossos filhos foram crescendo. Laura foi ficando mocinha e Eduardo era ainda criança, mas eu sentia em seus olhos os desmandos do relacionamento que tínhamos, eu e sua mãe.
Quando eu chegava ao escritório para o trabalho, eu simplesmente tirava a máscara dos meus desenganos familiares e cumpria com galhardia os rigores da função que exercia. Todavia, sentia-me cada vez mais enfraquecido e estressado.
Uma certa madrugada, tive que ser internado com dores insuportáveis num dos meus rins. Feito o devido exame, foi constatada a presença de uma pedra e de uma infecção generalizada em um dos rins. Na época, Letícia ainda disse: “Você não é de nada mesmo Uma dorzinha à toa e fica igual criança que perdeu um pirulito e, por birra, grita até ficar sem fôlego, depois, é claro, de levar algumas palmadas”. Fiquei apenas dois dias no hospital, mas foram suficientes para até desejar morrer. Eu não aceitava a idéia de ser chamado de covarde em apontamentos que não se encaixavam com o meu caráter de homem de bem. Porém, sentia-me covarde o suficiente por não ter coragem de tomar uma iniciativa e pedir definitivamente a separação. Até tentei, mas não fui convincente em minha explanação e ela riu da minha insegurança.
— Ah! O doutorzinho quer separar-se porque não aceita ouvir as verdades apontadas pela sua esposa! Você é um fraco que dá pena, Marcus! Todos fazem de você o que querem. Se você fosse mais arrojado, estaria ganhando o dobro do salário de miséria que traz para casa. Salário que não dá nem para as nossas necessidades básicas. Os maridos das minhas amigas estão cada vez mais prósperos e você, Marcus, continua o advogadozinho de porta de Micro-Empresa”.
Depois disso, mergulhei numa depressão profunda. Letícia estava certa, eu era realmente um covarde fracassado, pois não tinha coragem de comandar nem minha própria família. Construí um castelo de areia que estava desabando sobre a minha cabeça. Como mecanismo de fuga, passei a sair de casa, durante intermináveis noites e fazer aquilo que sempre detestei, ou seja, madrugada adentro e eu em rodas de papos fúteis e até me excedendo na bebida. Quando chegava em casa, Letícia já estava dormindo como se eu não existisse. Ela só gostava de controlar meu saldo bancário. Este também, eu só tinha acesso quando o banco ligava para cobrir alguma conta.
Recolhia-me e permanecia horas e horas refletindo sobre os porquês... Percebi que por mais longe que meus olhos enxergassem, eles não superavam jamais os poucos metros do meu solitário isolamento. Por isso abstinha-me, às vezes, do pensar e me permitia navegar por entre os pilares da utopia, os quais, enraizados em nuvens flutuantes, deslocavam-se no tempo e no espaço, para tentar atingir numa viagem celestial o encontro da felicidade. Os anos foram passando, nossos filhos foram crescendo. Quando percebi, Laura já não mais era a menina que um dia carreguei no colo e sim um bela moça me apresentando seu namorado. Eduardo tinha muitos amigos de sua idade e com isso quase nem parava em casa. Nisso eles eram bem parecidos com a mãe. Fato esse que vinha em acréscimo à minha infelicidade .
Para somar à infelicidade revoltante dentro de meu ser, que persistia em buscar uma vida em paz ou ao menos aquela que buscava o melhor para a família, imagine você o meu prêmio...Fui internado com problemas renais em situações cada vez mais desfavoráveis. Até que um dia o médico disse-me:
— Meu amigo, Marcus! Acho por bem você começar a fazer hemodiálises. Seus dois rins estão comprometidos e é melhor começar o quanto antes.
— É tão sério assim, doutor Rubens?
— Gostaria de lhe dizer o contrário, mas você é uma pessoa esclarecida, e é preciso que você seja forte.Você está com câncer nos rins e somente um transplante poderá devolver-lhe a saúde.
— Tenho quanto tempo de vida, caso eu não consiga um órgão compatível?
— Isso vai depender da maneira como você enfrentará a doença.
Disse-me, solícito. Fui para casa desconsolado. Abriu-se um abismo sob meus pés. Eu pensava que já tinha problemas demais. Num passe de mágica me descobri menor ainda. Mesmo assim, decidi esconder temporariamente minha terrível descoberta. Quis o destino me recompensar das intempéries, pois mesmo não havendo nenhuma ligação com o fato, tive mais quatro mil reais de aumento e meu salário passou à cifra redonda de vinte mil reais. Nesse ínterim, já contava com mais de vinte e cinco anos de empresa, era respeitado por todos, sem exceções.
Para melhor suportar as freqüentes dores que dilaceravam meus rins, eu chegava em casa e após uma leve refeição, ficava horas no escritório revisando os processos mais complicados. Quando as dores ficavam insuportáveis, eu dava um jeito de ir até o hospital e lá qualquer médico de plantão medicava-me, e eu retornava para a mesmice da solidão que vivia.
Letícia estava mais calma ultimamente porque quando teve conhecimento do pequeno aumento, conforme ela mesma havia dito, “era melhor do que nada”. A evolução da minha doença fez com que eu deixasse um colchão no escritório e lá passei a dormir sem nenhum reclame de Letícia. A considerar que vivíamos sob o mesmo teto, a única coisa que conseguia tirar Letícia do sério era o saldo bancário e a aparência de que estava tudo bem, que ela insistia em levar à risca.
Certo ocasião no avançado da madrugada, tive uma dor incomensurável, não mais conseguindo disfarçar a evolução radical do que eu tentava esconder. Cheguei a mergulhar nas entranhas do pensamento para enganar ou afugentar aquilo que dilacerava e torturava meus órgãos adoecidos. Porém a dor era tão real e cruel que por mais que eu tentasse, não consegui fugir do labirinto malfadado e desprezível que o destino me acorrentou. Restou-me enfrentar a sorte dos condenados sem defesa. Fui internado em estado muito grave e todos ficaram sabendo do meu estado terminal. Três dias depois, pedi que me deixassem ir para casa, onde pelo menos eu me entreteceria com o livros.O Dr Rubens permitiu somente quando nos prontificamos em contratar um enfermeiro para me assistir. Assim foi feito. A cada semana que passava, meu corpo ficava mais flácido. Emagrecia vertiginosamente. Tomava apenas sopinhas e líquidos. Orlando, o enfermeiro, auxiliava-me da forma que podia para que eu ficasse o máximo tempo possível envolvido com o trabalho. Eu não queria morrer, mas se minha vida estivesse com os dias contados eu terminaria assim, mergulhado no trabalho.
— Doutor Marcus, não quero interromper de maneira alguma sua narrativa, mas estou aflito por saber qual foi a reação da dona Letícia quando descobriu que seus dias estavam contados e que sua doença não tinha cura...
— Muito bem! Nos primeiros dias ela até demonstrou certa pena, no entanto, dias após, aumentaram as dores e meus reclames. Ela e minha filha mais velha mandaram calafetar as portas e ficavam até vários dias sem me visitar dentro da nossa própria casa. Confesso, no entanto, que não gostava quando elas apareciam. Sentia-me duplamente estressado, porque se o faziam era para reclamar que eu estava atrapalhando o sono delas. Chegou um momento em que a situação atingiu o extremo. Eu estava tentando descobrir, em meus dias de sanidade, se tive porventura próximo da felicidade. Na solidão em que me encontrava, tendo apenas as paredes nuas por testemunhas, chorei e busquei no fundo da memória a única imagem de quem jamais me magoou. Gradativamente Janini foi cristalizando-se nitidamente perante meus olhos. Dei um grito de alegria e até tentei tocá-la, mas fui interrompido pelos lamentos de Letícia que havia escutado meu grito estridente.
— Você está louco, Marcus? Até quando suportaremos seus abusos?
— Nesse mesmo dia, retornei ao hospital e os médicos pediram para que todos ficassem na expectativa de que, de um momento para outro, o pior seria inevitável. Letícia, a partir de então, convidou suas amigas e foram em várias funerárias em busca do melhor caixão para enterrar com dignidade, conforme ela dizia, seu marido Marcus.
Dois dias passados desse internamento, entrei em coma e por conta disso Letícia comprou um caixão intermediário. Com as amigas escolheu o melhor e mais caro, mas na hora de concretizar o negócio mudou de idéia, disse para ela própria: “ Depois de morto vai querer levar meu sagrado dinheiro? Levei mais de vinte anos para merecer essa pensão que é inferior ao desejável, mas suficiente para eu levar uma vida modesta. Não vou desperdiça-lo com requintes sem sentido. Ah! Isso não!”
No dia seguinte da compra do caixão, Letícia se reuniu com as amigas e anunciou que, após o casamento de Laura, tiraria umas férias com a seguinte justificativa:
“Vocês não imaginam o que passei com esse homem. Tive que suportar seu mau- humor, sua grosseria, sua mão de vaca, mas enfim, acabou. Que Deus o tenha!”. O que Letícia não sabia é que jamais podemos comemorar antes do tempo. Todos nós temos o direito à uma segunda chance, e foi o que aconteceu comigo. Quando já não mais existia vida em meu corpo, chegou uma ambulância com um jovem entrando em óbito, devido a um acidente de trânsito. Ao observarem a ficha do acidentado, perceberam que ele era compatível com a minha ficha genética. Seus parentes permitiram a doação de seus órgãos. Foi feito o transplante. Assim aconteceu o milagre em minha vida.
Revisado pelo meu querido amigo Mário e Denise, e atualizado em 08 de janeiro de 2005