O buraco na cozinha

Cristina acabara de comprar um apartamento na zona sul da cidade. Um investimento que levaria trinta anos para pagar todas as parcelas. Um modesto lugar para chamar de casa, duas suítes, quarto, banheiro social, cozinha e sala de estar conjugados, e uma minúscula área de serviço.

O que mais gostava no apartamento novo era da enorme porta da varanda que recebia durante a noite o vento frio e sem remorsos

do inverno. O assobiar do vento preenchia toda a sala, e aquele tom natural de ventania a reconfortara enquanto, sentada em sua confortável poltrona reclinável, lia Saramago.

A jovem era uma promissora gerente na empresa do primo, desde cedo batalhara para sair da distante cidade do interior para ter uma vida na cidade grande, ela aspirava alcançar o topo do mundo. Talvez todos almejem isso, uns mais, outros menos. De qualquer forma, a vida de Cristina estava bem, estabilizada, exceto por um pequeno buraco na cozinha, buraco que faria caber um prego.

Não lembrara de ter pregado ali nenhum adereço decorativo e o buraco a deixava terrivelmente intimidada. Certa vez, tomando seu chá de hibisco com torradas e manteiga, ela sentiu que do furo alguém a observara. Na mesma noite, após ir deitar, um pesadelo horrendo a fez tremer.

Caminhando por uma estrada sem fim, o chão era cheio de pequenos buracos tais como o da parede, buracos que no decorrer da estrada cuspiam vermes, centenas, sequer era possível enxergar os próprios pés, e quando tentava livrar-se deles, levava mordidas que faziam sua carne desgrudar como folha de papel sendo rasgada, a dor lancinante daquele pesadelo a despertou subitamente. A fantasia da alma tornara-se tão real que o corpo reagiu na realidade fazendo-a molhar os lençóis.

Cristina acordou disposta a tampar aquele buraco de alguma forma. Na manhã ligou para o sindico do prédio, mas ele não estava. Tentou conversar com Paulinho, o vizinho da frente, mas ele também não estava. Aflita por não conseguir alguém para resolver aquilo, Cristina decidiu que o faria sem contar com o apoio de ninguém. Tirou o dia de folga e foi para uma loja de materiais de construção no bairro. Enquanto caminhava, um pequeno filhote de cachorro pulou em sua direção, saído de uma caixa de papelão em frente à papelaria. Era um filhotinho que chamara sua atenção, o pelo era mesclado entre o branco e o marrom-chocolate. A jovem abaixou-se para fazer um cafuné no filhote, mas o pequenino rosnou e saiu correndo.

Andou mais uns metros e sentiu uma coceira atrás da orelha que irradiava até a base da sua coluna seguida de uma sensação de ardência não muito forte. Como é de costume de toda mulher suportar a dor das cólicas, Cristina quis pensar em outra coisa para que a dor não tomasse sua atenção. No entanto, chegando à loja, ela não aguentava a vontade de coçar que acompanhara a dor e a ardência. Ela forçou a calma

e perguntou onde estava o banheiro.

Com passos nervosos, suas unhas começaram o atrito, o vai e vem de uma boa coçada que não fizera passar a sensação agoniante que ela sentia. O mais esquisito, além dos sintomas em si, era a presença de um muco que deixava úmido as pontas dos dedos. Cristina pôs os cabelos para cima em um coque improvisado, virando bruscamente para ver atrás da orelha no espelho. A imagem refletida fez seu rosto tomar uma expressão de terror, um pequeno buraco se fizera atrás da orelha, o suficiente para que pudesse enxergar um pequena verme se contorcer.

Vê isso a fez procurar pela privada para botar para fora todo o café da manhã. Nauseada, ela correu de volta para casa. Depois de caminhar a passos compridos, arfando por causa da respiração irregular, Cristina tirou suas roupas para conferir a coceira que não passara.

No seu quarto, a jovem decidiu olhar outra vez, no entanto, o que era apenas um buraco atrás da orelha se mostrou como uma sequência bizarra de pequenos buracos que seguiam da orelha a base das costas. Em cada buraquinho uma substância transparente era expelida como suor, e os vermes se contorciam vigorosamente aproveitando do calor abaixo da pele.

Cristina gritou, mas ninguém veio. Ela ligou para familiares, amigos, mas ninguém apareceu. Os telefones da emergência davam apenas secretaria eletrônica. Quanto mais agitada, mais buracos se formavam em suas costas e mais os bichos corriam por baixo da pele como cupins penetrando a madeira. Molhada de muco, a menina cansou do desespero, parando em frente ao buraco da cozinha que agora cabia uma mão.

Ela sentiu uma estranha atração por aquele buraco, quanto mais próxima, mais a coceira deixava seu corpo, e quando frente a frente do buraco, corajosa o suficiente para enfiar a mão, ela o fez, algo a puxou, presa e desesperada, ela gritou e forçou para sair dali, foi em vão.

O buraco a puxou com mais força, antes a mão, agora o braço, depois parte do ombro e quando notou, metade dela estava dentro do buraco. A escuridão quente e molhada do lugar a deixara estranhamente confortável, cansada, exausta, ela ouvia uma mistura de vozes distantes.

Talvez fosse o Além a chamando para si, morreria ali sem realizar a outra metade dos seus sonhos, como conhecer um grande amor ou viajar para conhecer a Disney. Quando o buraco a tomara completamente para si, conseguiu distinguir as palavras "empurre com mais força" e sumiu.