MEU CASO DA VARA

Chovia cântaros, a gentileza de dona Ethel em dar-me carona foi providencial, após uma noite enfadonha de aulas dadas com a máxima má vontade. O carro encheu-se de colegas, Ethel empolgou-se pelo inesperado auditório. Sua voz meio rouca e aguda ao mesmo tempo agia como uma lixa sobre os ossículos martelo, bigorna e estribo, além de lesionar os tímpanos, feito britadeira. Era forçoso suportar, dava-me carona, chovia demais. Para que arriscar-me a ser convidado a descer com aquele dilúvio?

É preciso paciência, sim, agora mesmo disse que médicos não sabem nada, que Deus a orienta...respeite a fé dela, vamos, cara, você consegue, há pessoas que não são como você e não se encantam pela Ciência, pense na carona! Sim, sou civilizado é melhor esquecer da tortura dessa voz e ater-me ao conteúdo : -"Pois é, o irmão de meu marido estava em estado terminal de câncer e a morfina o fazia dormir demais...eu e meu marido concluímos que ele nem vivia com aquilo, só dormia... cortamos... dois dias depois ele morreu, fizemos bem..." Uma erupção vulcânica se operava em mim, que vontade de xingá-la aos berros... Pobre enfermo, morreu sentindo dores lancinantes , mas desperto... Maldito semáforo lento, sucessão deles, e chuva, não seria melhor encharcar-me a ouvir esse mocho? -" Ele até gania de dor, pensando bem, fizemos o certo, a dor é apenas um detalhe, somos muito religiosos, sabemos que ela não foi em vão, meu cunhado era homem sem fé" Isso causou-me uma convulsão interna, céus, sentado logo atrás dela, daquela hiena ( pois a cada frase soltava um risinho desconexo), era só rasgar-lhe a carótida! -"Meu marido ralhava com ele quando gritava de dor, fiteiro... o que pensariam os vizinhos?" CONCENTRE-SE NA CARONA! NÃO DIGA NADA, O CUNHADO JÁ SE ESTICOU COM AS CANELAS, gritei a mim, mentalmente.

E assim, suportei a provação,mas ao descer daquele carro, disse-me a mim," Um empalamento com estaca banhada em azeite fervente e pimenta malagueta não me incomodaria tanto quanto a voz e o que dizia essa vaca!"