Um Personagem...
Era de madrugada. Um horário calmo, onde em teoria a maioria das pessoas estava dormindo. Menos ele. Ele estava agitado como sempre. A cabeça que nunca parava de pensar, mesmo sabendo ele que aquilo lhe traria ansiedade. Uma inquietação que ele acreditava saber a origem, no entanto não conseguia combater. Não sempre. Estava com a janela escancarada, olhando as luzinhas dos apartamentos, fumava seu baseado e buscou com os olhos o livro do Velho Safado. Não curtia a pessoa, na real passou a detestar, não pelos contos, mas pelos atos. Se aquilo que viu, leu e ouviu sobre o mestre era verdade, a única coisa que prestava em todo seu texto era a sinceridade latente de suas linhas mal escritas. Gostava das pancadas, das zombarias, dos xingamentos, do sexo sujo, do sexo limpo. Eram contos de uma pessoa real, contudo ele não curtia quando as pessoas achavam que era ele mesmo atuando em seus próprios contos. Tentava colocar distância entre si e o personagem, e uma vez conversando com um amigo muito íntimo, que também escrevia, esse lhe revelou um problema semelhante. Todos os criadores parecem passar por esse processo de autoafirmação de seu trabalho, e de autocrítica, tentando ganhar distância das suas criações. Na literatura isso é tão evidente, fica difícil separar, ainda mais quando o texto é bom, fluido, bem humorado, descritivo e inquieto.
Soltou uma golfada de fumaça e a névoa cobriu sua visão. Dentro de sua mente estava verde, piscando laranja e branco em luzinhas de formato circular. Após a dispersão, a vista focou novamente. Havia lido algumas páginas para se inspirar. Leu sobre como jogar nos cavalos, como dirigir a toa pelas ruas de uma cidade parva, e suas aventuras com as mulheres mais descabidas da noite. Era forte, as vezes profundo. Dava para sentir na pele, os cortes, o sangue, os golpes arrancando-lhe os dentes. Cicatrizes profundas, marcadas não só pela rudeza da pele, mas das colisões da vida. Todas as vidas, com seus desaforos, e todas as vidas com suas belezas; os personagens viviam suas histórias, romances, desapegos, e com as mãos ele mostrava o gesto, em algum momento unidas, o que significava que naquele instante estava com alguém que lhe importava, vivendo algo realmente muito bom, e depois as mãos se afastavam, e era assim, como a estrada, como as viagens, então, o que se tem de aproveitar, senão as ocasiões únicas quando aqueles corpos se entrelaçavam para aniquilar seus desejos mais enlouquecidos debaixo de uma lua brilhante. Histórias ficcionais. Tipos criados. Flertes arranjados. Ápices gozados. Tempos aproveitados. Lembranças marcadas. Estradas que seguem. Ele era só um personagem, mais um...