Dilúvio.
Um dia começou a chover, uma chuva fina, que não chegava nem a formar gotas, como uma cortina de névoa que caia aos poucos sobre a terra. Um dia a chuva começou a engrossar, como pequenas linhas cinzas descendo e rolando no chão, escorrendo no asfalto, na grama e nos telhados. Um dia a chuva tornou-se forte, pesada.. bloqueava a visão e enxarcava os prédios e o chão. Um dia a chuva já chovia a tanto que já não molhava mais nada. Tudo estava molhado e só se acumulava água sobre água; uma película cristalina sobre as superfícies.
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Chegou o dia em que a chuva já não era mais nova ou diferente; ela estava sempre ali, e a água sobre o chão também, sempre um pouco mais alta. Já mergulhávamos os pés inteiros quando saíamos pra passear, e sentávamos no assoalho molhado da grama quando queríamos pegar um sol. No dia em que a chuva começou a entrar nos prédios, passando debaixo das portas dos blocos, ninguém mais saiu de casa.
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Um dia a chuva começou a subir as escadas; esse dia já era esperado. A chuva dissolveu aos poucos as paredes e o teto, chovia dentro de casa, agora mais fina, e gotas compridas e macias escorriam pelas paredes e caiam nas nossas cabeças. A chuva dissolveu as portas e as fechaduras. A chuva inundou os lares.
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Um dia a chuva cobriu a terra inteira. Saindo de casa, eu andei pelas ruas vazias e pelos bairros, e vi todas aquelas coisas que um dia foram coisas e que agora eram só água, dissolvidas pela mesma chuva que dissolveu tudo. Nós também fomos dissolvidos. Um dia não havia mais nada. Eu fechei os olhos e debaixo das pálpebras encontrei uma caverna. Você veio comigo para dentro e lá nós conversávamos, contávamos histórias e encontrávamos uma luz; no fundo dessa luz, um castelo feito de cristais.