Muralha
Olho daqui e posso ver a Muralha. Parece intocável, intransponível. Eu sei que não é, jamais poderia ser... Coloco-me de frente ao desafio de vencê-la, parece uma questão de honra poder encará-la sem medo. Mas é tão difícil não temer... O que quero agora talvez explique o valor de minha limitação. O que poderia ser pior do que se sentir assim tão cansado? Cansado demais pra lembrar do que realmente é importante?
Vagueio em pensamentos e busco coragem. A Muralha é ameaçadora, parece me olhar com nojo. Tantos a desafiaram... penso, quantos ela não humilhou? Talvez isso não importe agora, quem sabe só mais tarde. Eu só preciso encarar esse medo... medo de fracassar... de me olhar no espelho e ver o que sobrou depois da queda. Sou compelido a me abster dessa indecisão e no momento eu não quero mais pensar. Eu preciso chegar até ela.
Ergo a cabeça e vejo o quanto pareço indefeso sob sua sombra. Ela, a Muralha, limite para os homens sem sonhos... desafio para homens inconformados... Acho que ela não quer ser desleal, me oferece meios pra acreditar, fendas onde eu posso me apoiar, enfiar as mãos e me segurar, dar impulso e buscar desesperado outro lugar para me amparar, não quero cair... Essa ajuda é uma forma de me humilhar.
E mesmo contrariando meu orgulho me ponho a escalar, aceito a ajuda mas sei que ela jamais seria tão ingênua, não a Muralha, ela não me quer do outro lado, não quer que eu saiba. Se fosse preciso cair por cima de mim ela o faria, desabaria em cima de meus questionamentos e me enterraria num sepulcro de rochas e dúvidas. Mas eu também tenho meus truques, mãos calejadas seguram firme na corda da esperança, mesmo quando é impossível desatar o nó de fogo.
Enquanto subo não olho pra baixo, não quero me impressionar de nenhuma forma, não quero perfumar meu ego e silenciar o medo com uma dose de otimismo, não, eu sei que ela provavelmente vencerá, ela sempre vence. Eu posso me permitir acreditar, sim, isso nunca garantiu nada, de todos os que vieram antes só sobraram resquícios de lembranças, nem suas memórias foram poupadas. Me apego tanto ao acreditar que de tal maneira as coisas sempre me parecem contrárias a tudo que parece me ajudar, o contrário é sempre o mais provável. A sina da queda... o rastro da intriga... a semente da solidão... Penso na solidão que me acompanha e sinto que talvez não seja ruim cair. Os que vieram antes sempre me retornam.
Não consigo precisar o quanto já devo ter escalado, mantenho o olhar fixo no alto. Me surpreendo por não parecer sentir mais medo. As pontas dos meus dedos sangram e fazem com que o sangue que marca a rocha me torne mais próximo dela, me faz sentir que talvez ela não seja tão dura assim. Os que vieram antes talvez não tivessem pensado nessa possibilidade. Ela é justa. Quer que eu suba. Ao menos parece estar com boa vontade e isso torna mais sereno o meu ser. Estou pronto pra cair... é o que penso, enquanto tateio em busca de mais uma ajuda. Não consigo encontrar a ajuda e algo sussurra, das profundezas do que não vejo em mim, que finalmente a hora chegara.
Decido então olhar pra baixo e a altura me recorda da insignificância de se sentir magoado com o temor. Não há nada de humilhante em ter medo. Tento mover meu corpo mas parece que ela, a Muralha, se inclinara um pouco pra frente e meu peso começa a cumprir sua parte no desafio. Mãos calejadas se seguram como se não houvesse algo mais lúcido a se fazer e é então que sinto que posso pensar em cair. Merecer chegar até o fim, pode ser que eu não mereça, mas nesse exato momento não sou eu quem duvida. Ela duvida por mim. Ela agora me conhece, sabe de como eu me sinto... Sou parte dela porque meu sangue a marcou. Ela não quis isso.
Fecho os olhos e percebo que me apavorei. Não devia ter olhado. Meus joelhos em carne viva decidem se esforçar primeiro, depois cotovelos, pés, mãos e dedos, todos unidos por uma razão. Os que vieram antes caíram em algum momento mas foram esquecidos. Não quero ser esquecido... Só sei que quero poder querer outra vez, mas quero querer de verdade, pra isso tenho que vencer a Muralha. Só que não sei como... Tudo parece confuso e começo a me questionar sobre a necessidade do que estou fazendo. Não seria melhor apenas admirar a Muralha de longe sem nunca desafiá-la? Me embriagar com suas histórias mas nunca ousar demais, propor um limite pessoal ao meu desejo e viver com o que me restava? Esse era o caminho mais provável, mas não, o contrário era a sina. Eu precisava saber...
Uso as últimas forças contra a queda. Continuo subindo. Pedacinhos de rocha se desprendem me atingindo nos olhos. Não posso limpá-los com as mãos. Meus olhos queimam. Já não consigo enxergar onde me segurar. Mas me parece que de alguma forma ela, a grande Muralha, se inclinara agora em meu favor, aliviando-me o temor que o escuro e o peso estavam me causando. Pelo menos não cairia ainda que não soubesse aonde chegaria com aquele esforço irracional. Mais pedacinhos de rocha, parecem até areia, entram em meus ouvidos, nariz e mais uma vez nos olhos. O calor pela primeira vez em que realmente o sinto desde que resolvi subir agora resseca minhas costas e minha pele parece colar às rochas deixando um rastro do que antes era só meu como uma lembrança para a Muralha. Ela gosta de pensar em todos, todos os que vieram antes. Eu serei como eles também. Mas não sem provar que subir sempre me foi possível. Ela tem o tamanho que eu a dei, mesmo sem enxergar, agora sei que ela não é mais alta do que sempre foi. Sempre houve uma chance... Eles, os que vieram antes, não puderam enxergar isso. E agora meus olhos também parecem forçados a desistir de sua única missão.
Percebo que minha mão alcança algo novo. Não é apenas rocha escaldante. Não. É impossível abrir os olhos pra tentar ver o que é e agora meu corpo treme e se desloca entre espasmos. Não pode ser verdade. Parece que minha outra mão percebeu melhor do que se trata. É algo macio, me lembra algodão... É como se houvesse um tapete feito da lã mais pura no alto da misteriosa Muralha que sempre me impediu de ver além. Era um prêmio para o vencedor, algo esperava pra me consolar por não ter caído quando todos os que vieram antes, mais sábios, mais preparados e merecedores, muito além do que minha consciência em ruínas pode supor, haviam caído... Não pode ser tão fácil assim. Não para alguém como eu tenho sido.
Meus pés encontram uma saliência quase inexistente e me preparam pra o último dos meus truques, a arrancada final, o ápice da centelha que inevitavelmente se apagará. Com os dedos sangrando e certamente manchando o tapete de lã imaculado, aperto-o com forças que não existem e ergo como que por feitiço meu corpo em colapso. É impossível abrir os olhos e tudo que mais quero é ver o que há além do que estava à procura. Com o peso do corpo todo sobre meus braços inertes a única coisa que me toca é a maciez do tapete em cima da Muralha. Eu iria ver... Finalmente. Eu que nunca havia vivido tanto, não sabia de nada e o que sabia talvez não fosse nada da mesma forma. Mas agora era só questão de abrir os olhos.
Enquanto me deleito com a sensação de que só preciso olhar e tudo estará acabado, deixo que minhas mãos sintam a maciez do topo acariciando suas feridas adquiridas na subida, feridas que doíam porém não mais do que aquelas que nem eu podia saber a gravidade. Ela, a Muralha, podia ser letal, mas no fundo do meu ser haviam coisas mais letais... Agora só há a maciez que minhas mãos experimentam. É hora de abrir as janelas, deixar o vento entrar. A subida foi uma estrada, e o pobre andarilho agora vai poder matar sua sede...
A maciez desaparece... inesperado... minhas mãos entorpecidas pela lã onírica agora sentem como se pregos as tivessem transpassado. O peso do meu corpo parece triplicar e o sangue escorre enquanto me esforço para não cair... A dor é insuportável... não segurarei por muito tempo... não tive tempo de abrir os olhos e enxergar o segredo que nunca me interessou saber de verdade... Era só uma questão de provar que era possível. Sim, eu havia conseguido... Abro as mãos... a dor ainda está lá. Os pregos disfarçados de lã atravessaram minhas mãos e agora se negam a deixar que eu caia. Lembranças, o calor, tudo é insuportável. Mas talvez o fim seja justo. Ela não quer só meu sangue marcando suas rochas. Não, ela quer meu corpo como sinal de que ousadia tem um preço, talvez minha sina não fosse a queda e sim o exemplo... um exemplo de como não dever ser... uma vitrine do fracasso...
Como um moribundo de mãos amarradas que aguarda o carrasco puxar a alavanca e correr para subir em seus ombros, permaneço resignado sentindo cada nuance que os pregos me cedem num brinde à dor que não é mais física. Mãos calejadas se prendem com força. Sim. Era isso que importava. Remexo meu corpo e retomo a posição de escalada até que consigo encostar a sola dos pés na rocha em brasa. Os pregos se entreolham. Parecem duvidar do que pretendo fazer. Eles se acharam muito espertos mas eu ainda tenho um último truque... Empurro com força suficiente pra notar que o nó de fogo seria desatado. Os pregos não querem me soltar mas assim como todos os outros que vieram antes, eu decidi cair... Num último instante esqueço tudo. Não sei mais por que decidi subir e tampouco se realmente saí do lugar. Pouco importa. Agora eu seria como os outros, aqueles que vieram antes... Com o corpo em queda sinto minhas ensanguentadas mãos livres e as levo aos olhos limpando-os com o sangue que delas escorrem porque apesar de tudo ainda quero poder ver uma última vez... Sinto a queda e ela também me sente. Eu não pertenço mais à Muralha... eu sou livre.... Ela me perdeu...
Da escuridão eu consigo avistar um sinal. Cresce. Luz... Meus olhos despertam e um véu azul se estende até encontrar um vestido avermelhado. Crepúsculo... De quem? Seria meu? Levanto e o que vejo é uma pequena mureta que mal me passa dos joelhos. Além dela um mundo como sempre foi, tudo que sempre vi e senti. Era aquilo o tempo todo...
Me sinto altivo olhando a pequena mureta mas sei que ela me foi generosa. Pareço grande perto dela, mas isso é agora. Pode ser que amanhã eu volte a ser pequeno outra vez e decidir subi-la seja um sinal de ingratidão, já que sempre que me olhar no espelho, verei somente o que sobrou depois da queda...