As traições do Dilsinho

Ao vê-lo, e saber o que ele faz, você não dá nada por ele. Mas ao ouvir sua história, é capaz de dar tudo. O Dilsinho mora ali no antigo Beco dos Canudos e com quase religiosa regularidade pode ser visto à porta, num simulacro de alpendre sem teto, tomando sua latinha de cerveja junto com um par de irmãs com quem compartilha a casa.

Nenhum dos membros dessa trindade dá sinais ostensivos de seu estado civil pregresso ou atual, parecendo tranquilos sobre o futuro. Andam pela casa folgada e descontraída de um meio século bem dobrado da existência.

Teriam provindo dalgum povoado da municipalidade desta Velha Serrana. Mas com algumas dúzias desses logradouros recentemente catalogados e descritos em livro - excelente por sinal - pelo pitanguiense Welber, não ouso propor uma adivinhação por parte do leitor. Afinal, ao cabo (que não é o presidenciável Benevenuto Daciolo), são todos, os povoados, iguais. Perante às leis municipais e quase tudo o mais.

Dilsinho, que é a simpatia e prestatividade em pessoa, e em sua bicicleta mui andeja, vive pensionado em razão de uma lesão no braço, direito, senão o esquerdo, que o impede da atividade laboral em geral.

Sua paixão, entretanto - ma confessou no adro da matriz de Nossa Senhora do Pilar, enquanto dava um apoio à montagem dos cenários para as encenações que aqui se fazem da Semana Santa, já há muitas décadas - é a traição. Pura e simples, e por mais execrada que seja, não se incomoda com algum eventual incômodo do populacho mais crédulo, ou até mesmo alguma retaliação do Altíssimo. Sua presença é imprescindível e, sem o seu grave pecado, nada haveria a ser perdoado e naturalmente, para o Reino dos Céus, resgatado.

E Dilsinho sabe que Jesus é bom, perdoa numa boa, até no suspiro final que acontece exatamente na noa.E já beijou gerações d´Ele. E contente com seu papel, sabendo que algum dia encontrará também o Céu, não cobiça papéis alheios, como os de Tulinho da Ném, por exemplo, mais veterano, que já foi de Caifaz a Herodes, sempre reverenciado pelos colegas e platéia que não deixa de prestigiar o evento. E que cresce a cada ano.

E a Jesus, a quem só trai porque assim o determina a Bíblia, não crê que poderia representar. O braço enfraquecido poderia lhe apressar o fim da cerimônia. Já os dos ladrões, ninguém, a não ser lá no Planalto, estaria a fim. Mas quem é de lá que, como Dimas, o bom ladrão, gostaria de ouvir que hoje ainda estaria no Paraíso, senão o fiscal?

Paulo Miranda
Enviado por Paulo Miranda em 23/08/2018
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