A Bruxa-Sereia
Naquela manhã eu acordei exausta. Minhas lembranças estavam um tanto nubladas, porém eu soube ao olhar para o espelho d'água que o dia anterior tinha sido de uma baita confusão, física e emocional. Havia pouco eu estava entrando nos dezessete anos humanos e para uma sereia é como se tornar adulta e responsável por si e pelos seus. Nós fêmeas de minha espécie original temos uma divisão familiar parecida com a de outros peixes e até mesmo insetos. Existe uma rainha, que é quem nos concebe, junto de outras escolhidas meticulosamente para serem procriadoras. A maioria de nossos machos são como peixes, no entanto nosso rei Netuno, é o pai de todos. Sendo ele considerado um deus pelos pobres homo-sapiens, é um dos poucos julgados como "sereios". E eu tenho duas irmãs diretas. São aquelas que nascem de uma mesma mãe, são criadas por essa entidade materna e ao longo dos anos seguimos o destino de tantas outras sereias. Nos tornamos criaturas sangue-sugas, predadoras de espécies inferiores, e utilizamos nossa voz para seduzirmos as nossas presas mais atraentes por diversos motivos. Os machos humanos. Passei os dedos sobre meu ferimento. Abaixo da minha cintura, logo onde o corpo começa a ter outra forma, outra coloração e as primeiras escamas, um grande rasgo vermelho na carne estava em processo de cicatrização.
Há pouco mais de um milhar de anos, algumas sereias perceberam que ao cruzar com esses machos, nasceriam sereias com a capacidade de transmutar entre as castas. Éramos humanos quando queríamos e necessitávamos. Isso facilitou e muito na captura de mais e mais machos, e começamos a ser uma espécie de sereia diferente das outras. A porção humana nos dava fome, não só de comida, mas de poder. Algumas de nós começou a aprender as formas de força e poderes humanos. A bruxaria nos foi apresentada e eu e minhas duas irmãs nos tornamos especialistas. Sabíamos alquimia, espageria, cozimentos e criação de ungüentos, poções e feitiços para diversos fins. Lembrei do rosto daquele peixe que me atacou. Era um dos mais leais e devotados ao senhor Netuno, um de seus guardas de elite. Olhei para o espelho novamente e pensei no quanto minhas duas irmãs me olhavam com certa inveja naquele dia, e até com certo receio. Elas sabiam que eu era uma extensão diferente. Eu podia não só me transformar com mais facilidade, como aprendia os conhecimentos das espécies e transfigurava-os a favor das sereias. Eu era especial e elas sabiam disso. Passei um pouco de creme de arnica no ferimento e esperei a natureza fazer o resto.
E claro, vocês como eu, irmãos mais novos né, admiramos nossos semelhantes mais experientes como qualquer outra cepa. Minhas queridas irmãs são tudo para mim. Apesar de termos nossas desavenças, eu as respeito muito e sempre que me era cabível, eu cumpria minhas tarefas em favor de nós três, e depois em favor dos de nossa raça. Por conta disso acabei realizando certas coisas que não me orgulho muito, apesar de jamais me arrepender, pois nós três seríamos as primeiras sereias a chegar ao primeiro milênio de vida. E isso se iniciou quando eu, orgulhando minhas entes, acabei com a vida apática de Netuno. Primeiro dilacerando sua guarda de elite inteira. E depois cravando meus dentes em seu pescoço, sugando sua vida, sentindo um poder enorme correr nas minhas veias. Larguei o maldito que revirava os olhos e no momento do ataque, algo diferente ocorria em mim. Eu quando em fúria me torno mais forte, mais impulsiva e mais irracional. De qualquer forma, até mesmo a rainha teve que se curvar, e as parideiras aprenderiam a caçar conosco, os machos escolhidos a dedo para copular e gerar mais sereias como nós. Depois que findei com muitos outros que não entenderam ou se opuseram, precisei de fazer um esforço para tomar controle de minha mente e não atacar as minhas comparsas. Foi a primeira vez que vi medo nos olhares de minhas duas irmãs. Dusva a mais velha se encolheu atrás de Nalhi, a do meio, a quem imaginou que eu jamais atacaria. Ela pode sentir o meu hálito sulfuroso, o vermelho furioso de meus olhos, e o sangue escorrendo pelo canto da minha boca. Nalhi suplicou-me para que eu, a sua pequena irmã, tomasse a consciência de volta. Segurou-me com fervor em meus braços e me sacudiu dando um tranco em minha mente. Percebi o que estava fazendo, e retornei-me de minha cólera envergonhada mergulhando para longe de todos.
Não precisei fazer mais nenhum curativo, no mesmo dia à tarde meu ferimento não passava de uma queloide em minha pele. Minhas irmãs estavam extasiadas como se tivessem usado drogas humanas, e aquele dia em especial, seria um dia de reflexão para mim. À partir de então, começamos uma nova linhagem. Os homens-peixe se tornaram nossos asseclas, nossa primeira linha de defesa, e por que não dizer, em épocas raras, nossos amantes. E os ataques aos humanos se tornou um jogo soberbo. Nos espalhamos pelos oceanos, e em diversos lugares diferentes ouviam-se as lendas de mulheres que possuíam caudas de peixes coloridas e brilhantes, que usavam sua bela voz para alucinar os mais incautos, e os devoravam ou os afogavam pelo puro prazer de matança de um animal selvagem. Essa última parte não funcionava bem assim, porém um tanto melhor eram que essas histórias fizessem sua parte, e protegessem a verdadeira ideia de nossa existência. Poucas frotas de seres humanos se determinaram a nos caçar, soubemos de algumas baixas sensíveis entre as sereias, pois éramos ligadas por uma energia tão profunda e bonita que uma podia sentir em tese, a outra. Como uma comunicação sem precisar de falas, apenas da existência. Tinhamos que tomar mais cuidado, pois os humanos queriam nos caçar e exibir nossas caudas como troféu, para mostrar para todos quem era a espécie dominante do planeta Terra. Esse era um erro comum para nós sereias, pois para início de conversa, o planeta é azul, por conta de seus gigantescos oceanos, um planeta recheado de água, o planeta das sereias.
Todavia num desses ataques eu me apaixonei. Não sabia o que era isso, não sabia que poderia existir tal sentimento. E no momento atual isso tem atrapalhado um bocado aos planos estrategistas de minhas irmãs em dominar a espécie dos homens como nosso "gado". Minhas irmãs e eu brigamos de um jeito horrível e eu me afastei delas. Vivo sob minha forma altruísta, como uma curandeira de uma pequena vila. Quando preciso, uso da minha magia para ajudar os mais necessitados em alguma adversidade mais complexa, tendo eu que erigir alguma fórmula extraordinária a fim de resolver seus aborrecimentos. Fora isso minha vida tem estado tranquila, sei que em algum momento terei de enfrentar minhas irmãs, no entanto a única coisa que quero agora é curtir os últimos anos de meu companheiro humano, como humana. Meu nome é Serena, e eu sou uma bruxa-sereia.