O Espelho

O ano era de 1952. Lembro muito bem, eu era criança e costumava passar as tardes na cafeteria do meu pai, observando as pessoas que ali vinham tomar café, fumar cigarro e principalmente conversar e, entre essas pessoas, uma me chamava bastante atenção, não por ele ser um senhor de idade, mas por contar belas histórias, todos os chamavam de antropólogo e vou contar para vocês umas de suas histórias que achei surpreendente, não por ela ser incomum, mas porque o incomum nos surpreende.

- “Muitos anos atrás, em 1904, eu estava com 25 anos e recém-formado em antropologia pela universidade de Coimbra, então fui convocado para uma expedição ao Acre que foi anexada em 1903”. Falou o antropólogo para os presentes.

- “Diga-nos doutor, nessa viagem de expedição, tiveram algum contato com índios e aconteceu alguma história extraordinária”? Perguntou uns dos senhores sentado à mesma.

- “Sim, aconteceram várias, mas vou falar de uma que começou com um simples e pequeno objeto encontrado por um nativo de uma tribo ianomâmi que passei vários anos estudando e a história se sucedeu assim:

Às margens de um grande rio que demos o nome de Rio Acre havia uma tribo de índios ianomâmis que só travamos o primeiro contato, quando estávamos de retorno e na ida para o Acre um de nossos membros da equipe deixou cair inadvertidamente um espelho da bolsa. Posteriormente, passou um caçador ianomâmi que viu no chão um curioso objeto redondo e brilhante, o espelho perdido. No entanto, o caçador ianomâmi abordou-o com desconfiança e curiosidade, pois ninguém tinha visto um espelho ainda na sua aldeia - daí a desconfiança.

Ele pegou o espelho e para sua surpresa:

- "Este é o rosto do meu pai!" Disse para si mesmo com admiração.

Kaisarwe era muito jovem quando seu pai faleceu e, enquanto crescia, assumira cada vez mais semelhança com seu falecido pai.

O caçador não se atreveu a acreditar no que viu. Sua alma ingênua e inocente foi rapidamente convencida. Ele se prostrou diante do espelho e o saudou como um filho obediente que cumprimenta seu pai. Então ele respeitosamente levou o espelho aos lábios e beijou-o:

- “Ó meu pai, meu querido pai, você veio do reino dos espíritos para me visitar”. Disse o ianomâmi admirado.

- “Você se escondeu nas minhas florestas, talvez por dias e noites e é só agora que eu vejo você”! Gritou Kaisarwe erguendo as mãos para o céu.

Kaisarwe cantou e dançou de alegria. Hora vez outra, ele olhava para o espelho com ternura e ficava feliz em ver que o olhar de seu pai também era cheio de ternura e alegria.

Então, o primeiro momento de alegria passou e foi à floresta em busca de caça e, chegando lá, segurou o espelho na mão e falou com seu pai estas palavras:

- “Você reconhece a nossa floresta? Agora me tornei um grande caçador da aldeia, os animais me temem. Eu era Wahati, órfão e agora sou Kaisarwe, o filho do trovão”.

Em seguida, o ianomâmi foi para oca.

- "Aqui está nossa oca, meu querido pai. Veja que está maior do que antes. Acabamos de terminar a construção de dois níveis dispostos em acima do primeiro que está no solo e os nichos nesses dois níveis estão dispostos circularmente e no centro onde está a grande abertura para o céu é o espaço para nossos rituais e cerimônias. Mostrei tudo o que fizemos para melhorar o seu legado que nos deixou oh, grande chefe e Guerreiro”. Afirmou Kaisarwe convictamente.

- “Que o nosso trabalho te agrade”! Exclamou gritando para o céu.

O ianomâmi exibiu orgulhosamente toda a oca, onde viviam os integrantes da aldeia sem que os demais índios o percebessem por ser o objeto pequeno que cabia na palma da mão.

Entretanto, havia uma esposa. Ela estava na lavoura, pois as mulheres se ocupam da agricultura e os homens da caça na sociedade ianomâmi.

Temendo que sua esposa não gostasse de vê-lo conversando com o seu pai, achou melhor procurar um lugar para esconder o espelho antes que ela o visse. Resolveu colocar seu precioso tesouro em um cesto cargueiro vazio.

No dia seguinte, foi caçar como de costume. Mas ele voltava para casa com frequência para ver o que ele achava ser o espírito de seu pai. Então, depois de se certificar de que estava sozinho, tirou o espelho, segurou-o diante dele e falou com ternura, como teria falado com seu pai após muitos anos sem se verem. Então ele colocou o espelho de volta no cesto, dizendo:

"Eu devo deixar você, meu querido pai, e deixá-lo em paz, não fique triste, porque eu tenho que caçar para alimentar o meu povo". Falou Kaisarwe calmamente.

A esposa de Kaisarwe, enquanto isso, começou a ficar muito intrigada com o comportamento do seu marido. Ela observou-o e viu-o remover um objeto redondo e brilhante do cesto.

Muito curiosa, ela foi ver o que era. Quão grandemente foi seu espanto ao ver o seu próprio rosto, mas nunca tendo visto um espelho, ela pensou:

- “Então meu marido tomou uma nova esposa! Ele a mantém escondida neste cesto de palha para que eu não a veja! É por isso que ele está tão esquisito, ele está falando sozinho e não está mais prestando atenção em mim! Oh! mas vou dizer a ele quanto custa fazer uma desonra”! Exclamou a esposa furiosa.

Ela pegou uma longa vara e esperou o retorno do marido com a intenção de infligir uma boa punição. O caçador ianomâmi voltou tarde naquela noite. Quanto mais sua esposa esperava, mais sua raiva crescia. O caçador voltou feliz por ter trabalhado bem durante todo o dia, tendo feito uma boa caçada. Ele voltou, portanto, feliz em pensar em chegar na sua oca e poder anunciar o resultado da caça.

Assim que ele abriu a porta do nicho, no entanto, sua esposa correu para ele, brandindo, rangendo os dentes e gritando:

"Homem perverso! Ingrato! O que você fez? Quem é essa nova mulher que mora aqui no nosso nicho? Quem é essa sua nova esposa? Gritava a esposa furiosa.

A esposa indignada correu para o cesto e, pegando o espelho, jogou-o na cabeça do seu marido. Felizmente, ele o pegou.

- Mas o que significa isso? Você não vê que é apenas o espírito de meu pai que veio dos reinos dos espíritos para nos visitar? E é assim que você trata meu pai? Falou Kaisarwe.

Mas a mulher pegou o espelho de suas mãos e disse:

"Este é seu pai? Desde quando seu pai tem as características de uma mulher, cabelos compridos e desde quando ele usa colares e adornos femininos”? Perguntou a esposa com ar de ironia.

- “Você está louca? Esta é o espírito do meu pai. Eu nunca tive outra esposa além de você”. Retrucou Kaisarwe.

Kaisarwe e sua esposa proferiram gritos que os índios dos nichos vizinhos vieram para ver o que estava acontecendo:

- “O que está acontecendo com vocês? Por que esses gritos? Por que vocês estão brigando? Nunca ouvimos vocês discutirem e esta é a primeira vez que ouço gritos vindo do nicho de vocês”. Falou um dos índios que veio ver o que estava acontecendo.

A esposa de Kaisarwe entregou-lhe o espelho:

- Olha! Meu marido pegou uma nova esposa e a mantém escondida nesse cesto de palha. Olhe para esta linda mulher e depois me diga se meu marido não é um homem cruel que merece um bom castigo”. Afirmou a esposa furiosa.

O vizinho se aproximou do espelho, enquanto a mulher ainda o segurava, ele viu dois rostos:

- “Eu não vejo apenas uma mulher, mas também um homem. E a mulher parece com você”. Afirmou o índio do nicho vizinho.

- “O que você está dizendo aqui é apenas o rosto do meu querido pai!”. Retrucou Kaisarwe.

Intrigado, Kaisarwe se inclinou sobre os ombros. Agora, três rostos estavam refletidos no espelho!

- "Que coisa estranha! A mulher parece minha esposa e o homem, o meu vizinho"! Afirmou Kaisarwe sem entender.

Muito espantados agora, eles proferiram tais exclamações que logo toda a aldeia foi avisada de que algo incomum estava acontecendo.

Todos, um após o outro, subiram para ver este objeto misterioso e todos ficaram surpresos ao ver seus próprios rostos no espelho.

Os sábios foram consultados, e depois de muita deliberação no espaço principal da oca, eles finalmente entenderam o papel do espelho. Assim, o espelho, que quase semeou a discórdia entre Kaisarwe e sua esposa, tornou o caçador ianomâmi grande e admirado na aldeia.

- “Portanto, meus amigos, fatos incomuns podem acontecer provenientes de coisas grandiosas, assim como de coisas simples e banais”. Concluiu o Antropólogo.

Carlos Farias

Autor.