Na Caverna do Tempo
Na caverna do tempo - Um conto de fantasia e guerra.
As bombas dos Estados Unidos não pararam de cair sobre a região montanhosa afegã de Nangahar, na fronteira nordeste com o Paquistão. Najib não sabia dizer se havia se passado uma semana ou mais tempo, uma vez que ele e seus companheiros estavam aprisionados no interior dos túneis bem abaixo da superfície.
Não havia mais combustível para ativar o gerador, apenas algumas velas e duas lanternas. O rádio estava inutilizado, a água e a comida eram poucas e não havia explosivos suficientes para tentarem criar uma rota de fuga.
Há alguns dias, a data era 13 de abril de 2012 quando treze carros da patrulha ianque foram destruídos, e um helicóptero de combate caiu perante o poderio bélico dos crentes. Após a emboscada contra os americanos, a coisa tornou-se cáustica. A sanha vingativa tomou conta do inimigo, que despejou toneladas e mais toneladas de explosivos sobre as cabeças dos talibãs sob as montanhas. Os seis homens restantes estavam exaustos, famintos e sedentos.
Najib olhava os rostos cansados de seus companheiros, jogados na terra nua, com suas roupas em farrapos e um olhar distante, à meia luz de uma única vela. A cada novo estrondo, a chama dançava de um lado para o outro, tremulando incessantemente, hipnótica como os olhos de uma serpente. Najib lembrava-se de ter visto um encantador de serpentes nas ruas de seu vilarejo natal. O homem dominava a fera com os olhos e ela obedecia às suas ordens sem nunca questionar! Aquilo o fascinara por algum tempo, até que, no início de sua adolescência, ele começou a entender mais as palavras do clérigo local, e viu que o que o homem fazia era herético, e que ele deveria ser punido. Najib se lembrou de que ele mesmo pedira para punir o homem. Sentiu-se adulto naquele dia.
A luz da vela transformou-se de olhar de cobra em chama novamente, trazendo Najib de sua infância distante para o presente aterrador. Era impossível dormir com tantas explosões. Era impossível sair e lutar, pois lá fora os inimigos não estavam próximos, não lutavam limpo, eles estavam a quilômetros de distância com seus canhões de artilharia e a muitos metros de altura, com seus zangões radiocontrolados. Despejavam seu fogo mortal a todo momento. As explosões comiam centímetro a centímetro a proteção que as montanhas lhes davam. A cada novo impacto o teto tornava-se cada vez mais fino e perigoso.
E foi então, depois de tanto tempo em um medo contido e quase acolhedor, que o seu mundo de rochas desabou num baque abrupto, estrondoso e apocalíptico.
O teto veio abaixo de um instante para o outro, pondo fim ao refúgio dos soldados talibãs. Tudo o que sentia era dor, frio e escuridão, e, a seguir, apenas a escuridão cercada por um formigamento que se perdia aos poucos.
Quanto tempo ficou desacordado, Najib não tinha como saber. Num ato de clareza quase sobre-humana ele verificou se seu corpo estava intacto, depois viu que havia sangue em sua cabeça, mas que a dor não era proibitiva. Tateou no escuro absoluto por qualquer coisa que pudesse identificar e chegou a uma das lanternas. Ao iluminar seus arredores, viu que uma viga havia criado uma proteção e segurara a enorme rocha que certamente o teria esmagado. Não havia espaço para ficar de pé, mas ele conseguiria movimentar-se de quatro. Seus ouvidos ainda zumbiam, entretanto, ele escutava os lamentos de um ou outro de seus companheiros.
Najib inspirou o mais fundo possível e gritou os nomes de que ainda conseguia se lembrar. Nenhum deles respondeu, e aos poucos os murmúrios foram desaparecendo para sempre sob as pedras.
Quando o mais profundo silêncio envolveu o soldado sobrevivente, o desespero se apossou dele. Ele chorou por não ter morrido no desabamento, e sabia que sucumbiria perante a fome e a sede. Seus últimos momentos seriam de total desespero e solidão. Sua fé inabalável assegurou que suas preces se direcionassem a Deus. Ele sabia que sua alma estaria salva, pois sua vida havia sido de devoção e ação.
Foi assim que, no mais aterrador silêncio, uma nova explosão foi ouvida. O que deveria selar o destino do homem tornou-se sua salvação. Um novo abalo ocorreu e fez que pedras deslizassem próximas de Najib, abrindo uma saída lateral. O talibã pegou a lanterna e não hesitou em escapar daquela tumba.
Ele se arrastou por caminhos estreitos e rezou para que dessem em um bom lugar, e não apenas ficassem impossíveis de serem atravessados. Foi o que aconteceu. Ele chegou a um túnel mais amplo, onde conseguia ficar ereto. Andou rápido para longe de onde iniciara sua fuga, elevou o facho de luz para o teto, tentando ver se haveria uma possibilidade imediata de desabamento. Quando dava, corria, mas era perseguido pelo som das explosões. Amaldiçoava os infiéis, mas guardava forças para correr e manter-se lúcido.
Depois de algumas horas caminhando naquelas novas cavernas, levou a mão ao bolso interno de sua camisa, pegou um mínimo pedaço de pão e o comeu, depois lambeu a umidade das paredes para aliviar a sede que lhe cortava a garganta. Nesse momento, as baterias da lanterna finalmente se cansaram e o abandonaram na escuridão. Najib descansou, em uma mistura desigual de transe, cansaço e pura resignação.
Quando abriu os olhos novamente, esperava encontrar o breu do esquecimento ou a luz abençoada do paraíso prometido, contudo deparou-se com algo diferente —, uma tênue luminosidade não muito distante, que atravessava uma fresta na parede. Najib levantou-se e foi em direção àquela luz. O assombro o apossou, pois, do outro lado da parede da caverna, havia uma instalação aparentemente militar. Suas mãos trabalharam rápido para desobstruir a entrada, por onde a luz trespassava. Viu uma única lâmpada elétrica pendendo do teto, balançando levemente de um lado para o outro, de uma forma que lembrava como a chama da vela dançava.
Naquele novo ambiente, o soldado viu uma máquina grande, toda de aço, com grandes válvulas. Uma única escotilha de vidro era perceptível. Em sua juventude, Najib fora alfabetizado e, além do árabe, também recebera aulas de russo e inglês, idiomas dos países que sempre tiveram interesse em sua pátria. Najib notou as letras cirílicas em alto-relevo no aço, junto com a estrela e o símbolo da foice e do martelo. As palavras eram traduzidas como “Câmara hiperbárica” e “Feito na União Soviética”. No chão, havia esqueletos com uniformes militares do exército vermelho, mortos há muito tempo. Aquele lugar era do período do controle soviético sobre o Afeganistão, uma relíquia de outras guerras.
Ao lado do corpo de um soldado soviético Najib viu alguns papéis: “o objeto gera uma energia capaz de desativar as armas inimigas, contudo ainda não conseguimos entendê-lo nem utilizá-lo de forma plena. Pode ser que tenha alguma relação com sua religião, mas não podemos arriscar colocar um deles aqui. Não sabemos o que aconteceria”.
Najib olhou através da escotilha. Lá havia algo diferente, um leve brilho que o seduziu. Ele abriu a câmara, que fez o característico som de ar penetrando nos orifícios. De dentro da máquina ele retirou uma antiga lâmpada a óleo, e riu de medo e surpresa. Pensar em uma lâmpada velha, de cobre, antiga, dentro de uma casamata soviética nas montanhas afegãs era surreal até mesmo para o homem que acabara de escapar da morte.
Angustiado com o objeto nas mãos, o talibã pegou a fralda de sua camisa suja e esfregou na lâmpada. Era um ato infantil. Uma brincadeira. Tudo baseado em histórias que sua mãe lhe contava quando era tão pequeno quanto conseguia se lembrar.
Ele atirou a lâmpada contra a parede quando dela saiu uma fumaça esverdeada. Najib se colocou contra a parede oposta e segurou uma pistola em sua mão. O impensável ocorreu. Ele finalmente estava louco, pois à sua frente havia um grande homem negro como a própria escuridão, de olhos de fogo, com o rosto repleto de cicatrizes rituais e uma postura altiva. Em seus antebraços havia braceletes longos e repletos de motivos decorativos, feitos em ouro e ornamentados com pedras preciosas.
O soldado agiu como deveria: levantou a pistola e direcionou-a à aparição sobrenatural. Disparou continuamente, até que não houvesse mais munição em sua arma. O ifrit negro estava ileso e olhou para o homem, suas feições demonstravam um pouco de descontentamento.
Najib estava trêmulo. Ele fora bombardeado por dias, sem descanso. Seus momentos de repouso foram quando o teto desabou ou quando o corpo se entregou, pouco tempo antes de entrar na sala, mas foi a visão daquela entidade que abalou seu coração. Em seu íntimo, no fundo de sua alma imortal, ele sabia que teria de decidir entre sua fé e o que acreditava que via. Aquilo o deixava próximo de um ataque nervoso. O homem negro saído de uma lâmpada sorriu ternamente para o talibã atormentado à sua frente.
— Acalme-se, meu senhor. Você me libertou de minha prisão. Quero que saiba que estou aqui para ajudá-lo. — A voz do ifrit apaziguou a mente de Najib, fazendo-o lembrar-se de seu avô, um homem sorridente, contador de histórias e conhecedor de muitas coisas no mundo. As lágrimas de desespero e dor deram lugar a uma lágrima de saudades.
Com uma lufada de vento fresco e reconfortante, uma nuvem esverdeada preencheu o laboratório. O ifrit caminhou em direção ao soldado e segurou suas mãos. A paisagem ao redor mudou. Najib via uma feira estranha e ao mesmo tempo familiar, pessoas vendiam os mais variados produtos e falavam uma língua que era árabe, mas também outra coisa, como se o sotaque e várias palavras ou ainda não existissem ou tivessem sido esquecidas.
O ifrit guiou Najib até o meio da praça, o sol da primavera era carinhoso e o vento trazia cheiros de especiarias de lugares distantes. No poço, no centro de tudo, o negro ofertou água ao soldado. Najib estava sedento. Bebeu. Satisfez-se. Uma mulher alta, com roupas coloridas e um véu quase aceitável lhe trouxe frutas, pão e um carneiro. Najib sorriu. Lavou as mãos, o rosto, olhou-se no espelho d’água, estava limpo e com roupas que lembravam as das pessoas daquele lugar, mas possuíam um porte militar. Comeu. Saciou-se. Depois de vários momentos de incertezas, atreveu-se a falar com o ifrit.
— Obrigado por ter me tirado daquele lugar. Eu estaria morto se não fosse você.
— Não te tirei de lá ainda. Estamos apenas em um meio lugar, onde você pode se alimentar, saciar sua sede e se vestir como um homem de posses. Daqui a pouco, retornaremos à mesma caverna onde estávamos e você deverá tomar uma decisão. Deverá fazer um desejo. Coma. Beba. Acalme-se. Descanse.
— Você pode matar todos os meus inimigos e acabar com a guerra? Pode nos fazer vencer?
— Não. Não posso matar nem devo forçar o amor ou a dor, mas posso fazer muitas maravilhas. Seu coração revela que não há outra coisa que queira mais em vida do que o fim desta guerra. Sua vontade é férrea e suas intenções são boas. Não julgarei seus motivos, pois sou um servo e não um juiz. Não posso matar, mas você pode.
O mercado primaveril deu lugar novamente à caverna. O ifrit estava em pé, próximo da lâmpada e Najib encontrava-se do outro lado do laboratório, bem-vestido, sem sede ou fome. Ele lembrou-se de sua cidade em ruínas, do barulho das explosões, dos soldados invadindo casas, do voo mortal dos zangões, de sua família destruída. Lembrou-se da raiva e do poder que o fuzil lhe emprestava. Lembrou-se das palavras do profeta. Seu coração endureceu.
— Eu desejo, servo, ser a ferramenta que acabará com esta guerra. Eu desejo ser capaz de matar e acabar com todo esse sofrimento!
— Que assim seja, mestre. Seja o instrumento da morte. Não deixe sobreviventes, senão nada mudará. Tudo tem um preço e a morte se paga com a morte.
— Eu aceito.
Pela última vez, o laboratório foi tomado por uma fumaça esverdeada. A lâmpada apagou plenamente e o som distante das explosões do bombardeio cessou. Najib se viu em uma caverna bem decorada com belos tapetes. O calendário sobre a mesa de madeira mostrava o mês de agosto de 1993, mesma data dos jornais sobre uma escrivaninha. Ao seu lado, via homens armados, todos falavam com um forte sotaque saudita, estavam próximos, mas não o viam.
O talibã olhou adiante e reconheceu imediatamente um homem de aparência frágil e fala forte, um líder. Se ele não tivesse visto uma entidade sobrenatural pouco antes, não acreditaria que estava em frente a Osama Bin Laden. Ao lado de Bin Laden estava um outro homem, certamente americano, avermelhado, com uma pasta em mãos. Em inglês, os documentos mostravam o texto “Projeto Duas Torres”.
Najib sabia onde estava e sabia o que deveria fazer. Levou os dedos à arma em sua cintura. Ela estava totalmente municiada. Do outro lado da sala, o ifrit despediu-se com uma grande reverência e desapareceu nas areias do tempo e do deserto.