A GATA
A gata estava prenhe, o barrigão enorme, nas beiras de parir, tão roliça que já quase não andava direito.
Andava há dias a procurar um lugarzinho aconchegante em que pudesse descansar tranquilamente.
A mulher, apreensiva e cautelosa, preocupava-se com o local do ninho. Tinha receio da gata cismar em ter filhotes na cama, no guarda-roupas, nos armários, no sofá, nas gavetas, nos seus livros... Tomara todas as providências possíveis para que sua companheira não tomasse uma dessas atitudes levianas, nada agradáveis para o racionalismo humano.
Preparou até uma caixinha, cheia de paninhos para que a gata tivesse “uma boa hora”. O marido, porém, vivia no mundo da lua. Não se preocupava nem com a própria vida. Vivia no “deboísmo" eterno. Deixava os estresses para a esposa, afinal ela sempre fora melhor para pensar nas coisas práticas e objetivas do cotidiano do lar.
Foi justamente numa dessas distrações que a gata resolveu pôr suas manguinhas de fora. Achou que um baú abarrotado de lençóis limpinhos, descuidadamente aberto e desprotegido, seria um bom ninho para as suas crias. Nem pensou duas vezes e instalou-se lá mesmo toda garbosa, depois que o marido esqueceu a porta do quarto aberta.
A mulher, quando deu conta do acontecido, gritou de desespero e desolamento. Bradava injúrias contra a displicência do homem. E enquanto ela gritava, um filhote branquinho, felpudo e melequento vinha ao mundo bem em cima dos seus lençóis cheirosinhos.
O marido corre imediatamente para tirar a gata de lá de dentro e a deposita na caixinha que outrora ela desprezara para realizar a tal proeza do baú. O marido corre outra vez para levar o filhote, ainda com a placenta dependurada, para a caixinha. Nesse ínterim, a gata refugia-se debaixo da cama, assustada. A mulher grita mais. Não sabe como agir diante do acontecido.
O homem, então, perde o controle da situação e começa a gritar também. Seu coração acelera. Seu corpo infla. Seus olhos avermelham-se de cólera, chispando fogo. Seu hálito exalava um cheiro pútrido de tormenta e morte. Sua voz parece mais estridente que um trovão em dia de tempestade. Soca a porta, vira a cama, agarra a gata pelo dorso e, numa explosão de fúria, a arremessa com uma força descomunal porta afora de casa. A pobrezinha fica estatelada no canto da parede, imóvel, em estado de choque. É tão dócil, que foi incapaz de desferir um golpe sequer com suas garras àquele que deveria protegê-la. Ele agora não era mais aquele ser pacífico em que todos podiam confiar de olhos fechados. Ele agora era a criatura gigantesca, asquerosa, medonha, com garras e olhos de demônio, que arfava numa ira descontrolada. O homem sereno dera lugar ao monstro impiedoso, cruel, com cheiro de enxofre. Gata e mulher sabiam disso. A gata permaneceu num estado catatônico. E a mulher chorava copiosamente de medo, raiva guardada e mágoa. A gata num silêncio sepulcral. A mulher, contraída num canto da sala, com olhos fechados e com as mãos tapando os ouvidos.
Silêncio e choro eternizaram-se em minutos que pareceram infinitos.
Instantes depois, o efeito do ódio vai amenizando-se. A respiração do homem abranda. Seu coração desacelera. O homem, enfim, volta a ter olhos de tranquilidade, e não acredita no que foi capaz de fazer. Humaniza-se. Sente dor, vergonha e remorso. Caminha cabisbaixo até o muro onde a gata ainda permanece encolhida, toma-a nos braços, e delicadamente a coloca na caixinha.
Ele ajoelha-se com humildade servil perante à gata e à mulher, e pede perdão a ambas. A gata, trêmula, com olhos lacrimejantes e quase humanos termina de parir o restante dos filhotes, e não revida aos carinhos daquele que lhe fora tão cruel. A mulher, ainda aos prantos, permanece perplexa observando a cena.
O monstro adormece. Tudo volta ao normal.