O salto do calanguinho
Os calanguinhos de parede vão do clarinho a escurinho, mas é raro ver alguém que lhes tenha repugnância. Já os testemunhei caçando insetos, fazendo posturas românticas, ou intimidadoras entre si, e até, em um caso, pelo menos, um, em Jacarta, a tentar acertar-me do teto de um alpendre com um retro-petardo. Embora diminutos, o atirador e mais ainda a sua munição, pude desvencilhar-me a tempo. A propósito: lá eles são chamados de cicak (pronuncia-se tchitchak) e, se não chegam a ser reverenciados não são tampouco incomodados. E são bem clarinhos, quase transparentes, a ponto de se lhes ver uma sombra do coração e das veias de maior circulação.
No Brasil, ao menos nas Gerais, eles já revelam sinais óbvios da miscigenação. Se pudessem ser treinados para o consumo de pernilongos, seriam endeusados. Ao menos por mim. Mas o que percebo, é que os pernilongos sedentos de sangue não lhes interessam, senão de barriga cheia...
Mamãe, que tem um cuidado extremo com a higiene a a assepsia, sempre nos adverte que antes de tirarmos água de cisterna, devemos, além de lavar o balde com água dessa mesma fonte - por dentro e por fora - dar um bom puxão na corrente, antes de abrirmos a tampa do poço, para evitar a surpresa de um deles, aninhado entre os elos da corrente partir para o irrestível salto ao infinito e requerer uma custosa operação de limpeza total da cisterna.
E no caso, o cisterneiro que a furou, Geraldo Walder, o alemãozinho, há uns 58 anos, já não teria ânimo de se prestar ao resgate, a despeito de sua extrema gentileza quando nos encontra pelas ruas de Pitangui, e de sua imorredoura lembrança de papai, que lhe faz os olhos azulinhos merejarem, ao ressaltar que mesmo quando se acidentou no processo de furação da cacimba, e teve que suspender temporariamente a porfia, foi amparado pelo velho que não só o remunerou como em dia trabalhado, bem como lhe levava uma cesta de mantimentos, que também estendia o benefício ao seu ajudante sarilheiro, homem de sua inteira confiança.
Mas deixemos a nostalgia e voltemos à operação do balde d´água, ou bardágua, na sua forma resumida. E sem ousarmos contrariar as disposições do ritual de mamãe, não deixamos de confabular sobre as razões desse preciosismo.
Dia desses, ela, a título meramente recapitulativo levou-me à beira da caixa da cisterna - onde é terminantemente proibido nadegar - e me sugeriu dar um puxão na corrente que envolve o sarilho, ciosa de que meus bíceps corresponderiam à expectativa que faz de meu atleticismo.
E não é que de lá, frente aos meus incrédulos olhos, saltou um calanguinho. E o fez acrobaticamente, saltando de banda, se sorte a não cair sobre a tampa do poço? Na certa, as artes da sobrevivência, aprendeu-as com seus pais... esperta e cis-ternamente...