De Alberto a Deodato: o Colonião

Alberto não se intimidou de, aos dezessete anos, entrar para um quarto de quatro pensionistas pitanguienses nos albores do ano de 1971. O endereço era Rafael de Magalhães, no Santo Antônio, logo atrás da até então exuberante Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, a FAFICH da Universidade Federal de Minas Gerais, sita à Carangola, 88, um prédio de oito andares.

Nossos hospedeiros eram de Montes Claros, o marido, um zeloso pai de família, Vice-Diretor e `Professor, do Colégio Estadual, sua mulher Dona Mercês, aparentemente ainda mais zelosa, não bela e do lar, e seus três rebentos: dois já rapazinhos, e um peralvilho, Luís, de provocar descarrilhos por qualquer triz, mesmo que imotriz.

Dois outros pensionistas, João Lúcio, o Jean-Luc, e um outro João, de arroz com feijão, e violão, ocupavam ou outro quarto de aluguel.

Alberto chegara sem prévio anúncio, provindo também de Montes Claros, cujos pais, amigos dos hospedeiros, haviam arranjado, aparentemente de emergência, aquela solução de abrigar o indigitado adolescente.

Com as espinhas a lhe aflorar a cútis, prenúncio de barbaria, Alberto notabilizou-se logo pelo sotaque acentuado e linguajar singular que exibia. Sua mais constante e publicável expressão era o num trisxca nimim não qui tô arretado. A escolaridade era limitada para os seus 17 anos: segunda série ginasial, e passível de acesso tão-somente em escolas e escolhas particulares.

Desde logo, dois apodos lhe surgiram espontaneamente, sem que houvesse objeção àquela amistosa deferência: Deodato, em razão de um homônimo de Alberto ser famoso cronista do Estado de Minas, que pouco líamos, mas de quem na oportunidade nos servíamos, porquanto Colonião, mais pronunciado Colonhão, já saíra da própria boca do apelidado, ligando-o às atividades rurais, também aparentemente, ocupação de seus pais.

No que pode, e até mais além, Alberto enturmou-se ao grupo, nas chalaças que eram comuns de nossa juventude e jumentude, sem contudo, jamais referir-se à causa de sua brusca transferência para Belô, que notoriamente não se justificava pela sua escolaridade.

Não chegamos a fazer apostas, mas nossas suspeitas convergiam nalguma trapalhada que o pirralho tivesse cometido na terra natal - onde floresce o colonhão - e, cuja solução, para ao menos se dar um tempo, teria sido o internanimato possível na capital do Estado. Os 46 anos já passados desde então, quiçá permitam pensar numa eventual prescrição. Um traço de seu caráter, pelo menos à nossa testimonianza, não foi todavia apagado, ao contrário, saiu realçado: Alberto não resistia a uma provocação, mesmo quando em flagrante minoria.

Numa nossa saída conjunta para jogar um futebol de salão na vizinha e então pacata cidade de Santa Luzia, quase valeu uma guerra campal quando após um drible num adversário, Deodato não se conteve e se jactou em auto-elogio: fooora diii série...! Nossa sorte, ou graça alcançada mesmo foi que ato-contínuo a passagem de procissão do Santíssimo junto à quadra, deixou todos os contendores de joelhos, e pudemos dar nas canelas...

Inobstante suas tiradas e toques de espontaneidade, nosso Deodato tinha o seu lado obscuro, que só nos foi dado descobrir quando Inês morta e enterrada já era. Ao longo dos meses que convivemos os cinco no quarto frontal da pensão, fomos nos dando conta de que um odor demo-amoníaco cada vez mais intenso, vinha da prateleira inferior do armário, onde jaziam nossos sapatos e botinas.

E foi como num sonho - com garoa - que o William pode finalmente matar a charada: no breu absoluto da noite, a desoras, Deodato havia se apoiado nas bordas de duas paralelas para urinar à janela e, justamente naquele instante, uma brisa contrária trouxera parte de seus doirados pingos para o interior do quarto. Via de regra, viemos a constatar, ele urinava mesmo era dentro dos calçados mais fechados e menos usados por nós, e tinha o cuidado de verter o conteúdo pela janela quando pela matina todos saíamos.

Apesar de suas bravatas, espevitada intrepidez verbal, Deodato, do breu, nutria temor ancestral. E urinal. E no entanto, como vicejava o capinzal colonião que, poderoso, tomou de vez, lugar do meloso...

Paulo Miranda
Enviado por Paulo Miranda em 30/04/2018
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