A revolução das letras
A vida transcorria como de costume em Alphabeto. A rotina das letras se mantinha inalterada. O sistema alphabético vigente, moldou uma sociedade dividida entre os MAIÚSCULOS e os minúsculos. A maior parte da população era constituída pelos minúsculos. Letras que formavam o suporte de todos os segmentos da sociedade alphabética. Desde mão-de-obra especializada em construção de palavras, frases, textos; até edificação de um livro inteiro.
Os MAIÚSCULOS, constituíam o que se conhecia por... Os Iniciais. Nada, nenhum capítulo, sentença, fraseologias, textualizações, etc., tinha início sem a presença determinante de um Inicial — essa fina casta, elevada, iniciada, antes de qualquer suspeita_ para conduzir uma sentença até o seu termo.
Essa sociedade era regida por uma lei arcaica conhecida por Lato Sensus Significativus. Se um trabalho não tivesse na sua estrutura “o significado” determinado pelo Sensus, era imediatamente retirado do contexto, sendo que todas as letras seriam desagrupadas retornando à condição de “disponíveis para reconstrução”. Nos casos radicais, poderiam até serem apagadas, destituídas de suas funções significativas.
Porém, resignadas na sua condição minúscula, prosseguiam a cada parágrafo de suas vidas, entre ponto e vírgulas até chegarem ao destino de todas elas: o ponto final.
Um rígido sistema condicional cerceava ipsi literis, o futuro do vocabulário alphabético sem deixar escapar uma vírgula sequer.
Tentar libertar-se dessa trama muito bem enredada, era um exercício que poucos, muito poucos, conjugariam esforços para atingi-lo.
Mas, iniciava-se em meio às letras insatisfeitas com a inflexibilidade das regras impostas por um sistema pouco afeito a liberdade de expressão, um movimento clandestino que visava resgatar o poder da palavra. Para isso todas as letras precisariam se unir.
Trabalhando através de sinais previamente codificados, nem um til era desperdiçado.
Obviamente o líder era um sujeito oculto.
Vigorava uma estrita lei do silêncio. Após o trabalho, as letras deveriam evitar todo e qualquer agrupamento que constituísse um “significado” fora do estabelecido. Seguiam ordenadamente para o lugar que cada letra ocupava na ordem alphabetica. Um “a” minúsculo vagando sozinho em uma linha era tido como algo sem sentido e inofensivo. Porém, duas letras juntas, levantavam suspeitas fortíssimas o bastante para serem eliminadas pela borracha; instrumento que na mão dos poderosos era — na sua iletrada atitude — utilizado para interromper um processo criativo e não como solução para reescrever a história.
Em meio a todo esse controle da linha de ação das letras, inicia-se um movimento contrário, partindo de um trabalho de conscientização da força de expressão que as letras unidas possuem: descobre-se o poder da ordem e pontuação.
Após vários encontros secretos realizados entre letras e pontuações, o artigo é definido:
— Vamos mudar o contexto!
Para não chamar atenção, todas as letras farão seu trabalho normalmente. Porém alterando a pontuação e ordem das palavras, alteraremos todo o sistema significativo transmutando seu sentido. O objetivo a que nos propomos, será alcançado com a aplicação dessa estratégia em um texto de conhecimento e impacto geral para se ter o efeito desejado.
Após colocados os pingos nos “is”, chegaram a um termo comum:
o texto escolhido foi os direitos humanos no seu primeiro artigo, que assim ficou:
Artigo I
Todos os homens nascem(?). São livres e iguais em dignidade e direitos? Dotados são de espírito? E devem: agir uns para com os outros com consciência e fraternidade.
Ao tomar conhecimento das sutis mas significativas alterações no texto Universal, a cúpula do Sensus resolveu colocar um ponto final em toda essa história.
Para isso estabeleceu artigos indefinidos; desmantelou e suspendeu toda e qualquer significação entre parênteses; abortou o léxico expansivo; segregou o espírito; manteve a letra morta.
E tudo voltou à terminologia corrente. Os significados sem poderem ter liberdade de expressão se ocultaram nas entrelinhas. Vez ou outra algum signo arriscava-se apelar, em vão, ao poder da compreenção passando clandestinamente pelo Sensus Quo.
Definitivo ficou apenas o poder de interpretação de cada um. E com ele escreve-se a história ( aquela que a muitos não é conhecida ).