Hats off!
O Capítulo dos Chapéus, conto machadiano, é das mais saborosas leituras que tive ao longo de todo ano de 2017. Comecei a ler uma outra publicação do Bruxo do Cosme Velho, de mais fôlego, o Memorial de Ayres, igual ou melhormente amarrativo, mas por desarrazoadas razões, suspendi a leitura, querendo retomá-la, logo, e ainda o não logrei. Mas lograrei. E em algum lugar hei...Como os Chapéus, e tanta obra boa, indispensável ao melhor conhecimento de nossa literatura, e de nossa alma é Domínio Público e, pelo google facilmente se a localiza, mesmo quando se tem de driblar as chamadas que só levam a obras à venda...
E coloquei os Chapéus aqui para me auxiliarem na recordação de um fato que vivenciei, há quase 36 anos, em Varsóvia e que teima em sair de minha cabeça - que aliás, não é muito afeita à cobertura. E olhe que eu até gostava dos chapéus que se viam à venda nas chapelarias polacas. Mais comumente de feltro, de aba curta, pareciam ornar bem as cucas de dignitários do comunismo. E eu achava que eles compunham melhor ainda as cacholas dos membros do Soviete Supremo, ali vizinhos. O Andrei Gromyko, que era o eterno Chanceler, o Mr No da ONU, era o que mais se acertava com esse adereço. Quando comprei um par deles, foi em Gromyko que mirei mas o espelho teimava em dar-me uma reflexão mais krutschoviana... Dommage...
Contudo, todo esse lero-lero não passa de nariz de cera, para o núcleo de minha mensagem, aludida acima: pois é, deu-se em Varsóvia. Estava recém-chegado o Embaixador Armindo Cadaxa - outro fã de chapéus, que aliás havia servido em Moscou - com sua Senhora Maria Amarante, representante direta e digna e dileta da cepa do Marechal Rondon, de quem era neta.
A apresentação de credenciais do Embaixador Cadaxa ao Professor Jablonski, Presidente, e Chefe de Estado polonês, cargo decorativo, mais cerimonial, foi marcada para um belo dia de maio de 1982. Belo e frio.
Dona Maria Cadaxa envolvida e inebriada com aquele que seria o ápice da carreira do marido, que já havia sido titular das Embaixadas em Port-au-Prince, e Kingston, convocou as esposas dos dois diplomatas da Missão e determinou o ritual da recepção clássica que, na Residência da Embaixada, se seguiria à apresentação de credenciais no Palácio Governamental, estritamente comme il fallait para a solenidade da ocasião.
Homem falar de moda é temerário, a menos que ele tenha as sabilidades de um Karl Lagerfelt, ou assemelhados. Digo apenas que Dona Maria estatuiu as medidas das saias, mangas e golas, bem como a cor e salientou, sobretudo, o chapeú.
O processo de preparação para o evento teve duas semanas, no máximo. Lúcia, mulher de meu colega mais graduado René, tinha a vantagem de haver servido com o casal ambassadorial em Kingston e com o sobrenome de solteira Freyesleben e, de casada, Loncan, sentiu-se bem à vontade para seguir as determinações fashionistas da Embaixatriz. Demais, já por hábito, circulava em Paris, New York, Genève... Lina, minha mulher, chinesa-indonésia, com seus 22 anos e nossa filha Jolie, apenas passada pelo seu primeiro aniversário, já havia provavelmente lido tudo quanto havia de publicação de Agatha Christie, e executav Chopin magistralmente ao piano, passou a viver com o chapéu na cabeça. Literalmente. Fez de tudo para aprender naquele curtíssimo interstício - menos quiçá, ler Machado - para se adequar aos estritos e complexos parâmetros da chapelaria.
E finalmente achou uns dois que lhe pareciam apropriados à la grande finale...E lhe caíam bem, sobretudo um amarronzado que até parecia refletir a derme brônzea de Maria.
E com tudo pronto para a celebração, chega o matutino telefonema da Embaixatriz, a um par de horas do início do evento:
- Não vai ser mais de chapéu a partipação nossa!
E desligou.
E as mulheres, de cabelos em pé...Cabeleireiro, fryzjer, às oito da manhã?