Dials

[Início: "A Câmera"]

À mesa da cozinha, enquanto tomávamos chá, Kate mostrou-me o resultado de sua última incursão pela cidade com o novo modelo de câmera Lomo, uma que funcionava pelos princípios das câmeras Polaroid, imprimindo fotografias instantâneas. Dentre as cerca de 20 fotos impressas em papel brilhante, um grupo de três me chamou a atenção. Exibi a primeira.

- Esse é o coreto da pracinha... onde você localizou o afinador recursivo, no verão passado?

- Isso mesmo. Eu tive um pressentimento sobre o lugar, e fui testá-lo. Quando comecei a bater as fotos, vi que tinha razão.

Olhei para Vera, que estava sentada do outro lado da mesa. Ela apenas empurrou para nós uma travessa com os "syrniki" que acabara de fritar, mantendo uma expressão impenetrável.

- Cuidado, que estão quentes - alertou.

O rosto de Kate iluminou-se.

- Adoro os seus "syrniki", Vera! Tentei seguir a sua receita em casa, em São Petersburgo, mas não ficaram nem perto dessa maravilha...

Pegou uma espátula e colocou duas panquecas em seu prato. Vera a encarou com um misto de carinho e pena, mas o que acabou dizendo apenas, foi:

- Você não é a rainha da lomografia? Eu sou a rainha dos "syrniki".

Peguei a mão de Vera sobre a mesa e a beijei; ela sorriu. Depois, mostrei a segunda foto para Kate.

- Então, você voltou ao coreto e começou a bater fotos... e onde não deveria haver nada, apareceu... isto.

Havia três discos, do tamanho de antigos compactos simples de vinil, empilhados displicentemente à frente dos degraus do coreto, dando a impressão de que alguém os deixara cair ali de propósito, para que tropeçassem neles. O problema é que os objetos, embora visíveis através da lomografia, existiam numa dimensão paralela, sobreposta à nossa, e sua remoção exigia equipamento complexo, operado pelos militares.

- Sim. E tenho que admitir que foi uma surpresa para mim também... nunca antes uma área, de onde realizamos uma extração, foi preenchida novamente - revelou-nos Kate, cortando um pedaço de "syrniki" e soprando-o para esfriar. Mastigou de olhos fechados, um ar de felicidade espalhando-se pelo seu rosto.

- Isso é bom demais! - Exclamou.

- Você me deixa sem jeito - respondeu Vera, provando uma das panquecas. E, com ar de modéstia:

- Não está mau.

Vi que os "syrniki" já haviam esfriado o suficiente, larguei a foto sobre a mesa e comecei a comer também.

- Divinos... como sempre - provoquei Vera.

- Não há lugar para perfeição neste mundo - retrucou ela, impassível.

- É uma excelente aproximação - ponderou Kate. E pegando outra foto da série:

- Isto talvez represente uma tentativa de contato, por quem quer que seja que tenha criado os objetos. Este artefato, especificamente, nós os chamamos de "dials".

A foto mostrava um dos tais discos, mais de perto. Mediria talvez 20 cm de diâmetro por 2 cm de espessura, e parecia ser feito de metal prateado, coberto por manchas foscas e arranhões, denotando uso. Havia uma borda de cerca de 7 ou 8 cm circundando-o, da qual se elevava em alguns milímetros a parte central. Diferentemente de um disco de vinil, não havia um furo no meio. Ao longo da borda externa, doze pequenos círculos que lembravam enfeites; mas alguns eram transparentes, e outros, pretos, numa ordem aleatória.

- "Dials"? - Repeti, intrigado. - Até entendo que pareçam discos de telefone, com esses pequenos círculos circundando a borda... mas não seria mais simples chamar de "discos"?

Kate tomou um gole de chá, antes de responder.

- Seria. Mas a questão aí é o que os "dials" fazem.

- E... o que eles fazem? - Indagou Vera.

- Muita coisa - respondeu enigmaticamente Kate, mordendo outro pedaço de "syrniki".

Tivemos que esperar que ela acabasse de comer para voltar ao assunto.

- Os "dials" receberam esse nome porque lembram as conchas "dial", de um animê que eu via em criança - explicou Kate. - Cada concha possuía um poder específico... iluminar, aquecer, ventilar, gravar som ou imagem... estes artefatos fazem algo parecido, só que são genéricos: podem ser configurados através desses pontos ao longo da borda. Ou assim o imaginamos; ainda não conseguimos reprogramá-los.

- E o que imagina que estes "dials" da foto façam? - Inquiri.

- O de cima é, muito provavelmente, uma unidade de força... funciona como um carregador sem fio, e pode gerar tensões bastante altas, dependendo do equipamento com o qual esteja em contato.

- De onde vem a energia? - Vera havia pego a fotografia dos três discos e a examinava com a testa franzida.

- Não sabemos - admitiu Kate. - Parece... mágica.

- Você disse que esses "dials" poderiam ser uma tentativa de comunicação conosco?

- É uma suposição... são diferentes de outros artefatos que recuperamos, e os doze pontos podem indicar que utilizam uma base duodecimal - ponderou ela.

- E acha que podem ser reprogramados?

- Outra suposição... sim.

Vera virou a foto para Kate.

- E se essa disposição em particular houver sido intencional? Para que usássemos os três "dials" superpostos?

Kate pareceu surpresa com a ideia. Depois, balançou afirmativamente a cabeça.

- Entendo. Sim, é possível... preciso discutir isso com o general.

Vera ergueu a mão direita, para pedir calma.

- Não vai provar o "varenye" antes?

Virou-se para o balcão atrás dela e pegou uma compoteira cheia de doce de cereja, a qual depositou sobre a mesa. Kate abriu um sorriso.

- Bem... acho que posso ligar para o general mais tarde.

E começou a servir-se de doce.

[Conclui em "Comércio Silencioso"]

- [09-02-2018]