O Terror da Paixão
Em minha vida já presenciei muitas barbaridades que pessoas (a primeira vista muito racionais) são capazes de fazer quando estão atacadas pelo vírus da paixão. Humildemente e sem pretensão de ser algum autor de envergadura maior que o Zezinho (das piadas de escola) venho contar a vocês amigos historias que presenciei, e as relato como se estivesse em uma mesa de bar.
Leonardo era um velho amigo e trabalhava comigo na diagramação de um tablóide de propagandas e entrevistas com donos de estabelecimentos do comercio local. O trabalho nos dava o suficiente para pagar as contas e comprar umas cervejas nos finais de semana, coisa que fazíamos religiosamente no bar do Gordo, um boteco copo sujo com umas mesas de bilhar e um radio que permitia tocar nossas próprias fitas (ainda eram fitas!). Eu sempre levava alguma coisa obscura para ouvir e o Leo sempre tirava de sua mochila alguma fita com bandas jurássicas a mais amada era uma verdadeira peça de museu: Iron Butterfly
Foi neste boteco que o Leo bonachão conheceu a Renata e foi o tal "amor-a-primeira-vista", quando saímos de lá tarde da noite meu amigo estava agitado e contente, contava piadas e falava mil coisas ao mesmo tempo e falava da garota, sem parar, subiu em sua motinho velha e sumiu na madrugada invadido por uma paixão incrível, porem Leonardo vez vista grossa a um pequeno detalhe que não tinha nada de insignificante, a tal da Renata tinha um namorado (com quem foi ao bar) e durante as conversas outro fato curioso era o de que o namorado dela estava casado, então ficou claro que a guria era um rolo de um cara casado...mal sinal.
Quando na segunda-feira fui ao trabalho encontrei meu amigo tomado de cega paixão queria logo dar um pulinho no Gordo só para jogar uma sinuca durante o "happy hour"... Golpe barato, ele queria tornar a ver a Renata que talvez estivesse por la. Passamos a semana toda assim alem do fim de semana porem nada da moçoila. Na segunda semana, Leonardo já estava desconcentrado errando muito no trabalho, querendo evitar parecer muito aflito tentando se controlar daquela febre, evitou me chamar para ir ao Gordo.
No segundo fim de semana fomos ao Gordo ouvir Iron Butterfly e jogar sinuca, as coisas pareciam que iam voltar nos eixos e a tal da Renata seria apenas mais um nome na lista de frustrações de meu amigo.Quando íamos jogar a segunda ficha na sinuca eis que a guria entra no bar, novamente acompanhada do namorado. Leo não deixou escaparem desta vez, foi muito mais incisivo, forçou uma amizade com o "rival" o namorada da garota. A configuração era clara agora, Renata era apaixonada pelo alto e forte mulato que tocava em um grupo de pagode(algo muito difundido nos anos 90) o Mauro, o rapaz era casado e traia a esposa com a Renata sempre prometendo por um fim no casamento, Leonardo meio gordo e fraco não parecia ter muitas chances com a Renata que estava visivelmente caída pelo musico.
Juntamos as mesas e ficamos conversando amenidades e percebendo as coisas que rolavam nas entrelinhas das conversas, Leonardo se punha solicito com relação aos dois tentava uma jogada de ser um amigo de quer que fosse ou de Mauro ou Renata, queria ter a chance de encontrá-los novamente e durante a conversa engolia em seco ao ver cada carinho e beijo trocado entre o casal. O estratagema funcionou passado alguns dias o casal ficou intimo de Leonardo, apareciam no escritório, tomavam café riam e falavam como grandes amigos, as vezes Mauro ligava do escritório para a esposa.
Fazendo meu papel de amigo e sem querer dar uma de senhor dono da moral pequeno burguesa ate mesmo porque estou longe disso resolvi apenas ponderar com o velho Leo sobre a atitude um tanto leviana da moçoila, afinal se sujeitar a prestar o serviço de amante não era bom sinal, não pelo fato em si, mas ao menos poderia indicar uma baixa autoestima. Leo tomou as dores da garota (como era de se esperar), e me apontou que o Mauro era o agente corruptor da indefesa mocinha apaixonada.
-Mas afinal qual o seu plano Leo? - Se declarar para ela?
-Sim, no momento certo!
O "momento certo" foi no outro fim de semana, toda a conjuntura de trio amoroso iria piorar muito depois da declaração...
Chegamos no Gordo por volta das oito da noite, outros amigos já estavam no local tomando uma cerveja conversando bobagens e ouvindo um som como era de costume, o Leo estava com sua jaqueta jeans com uma estampa de outra banda muito antiga também Uriah Heep, todos ali já estavam acostumados a sua desconexão com as tendências musicais mais novas. Depois de muito copos e muita conversa o meu amigo já dava sinais de embriagues, entrava em discussões sobre a qualidade do som do vinil comparado com o CD, sobre determinado acorde da musica tal etc.
Repentinamente meu amigo foi tomado de uma euforia, era Renata que vinha acompanhada de Mauro. A esta altura o casal já era freqüentador do bar. Foram saudados pelos presentes com meneios de cabeças e erguer de copos, Leonardo foi ao encontro e abraçou Mauro como quem abraça um companheiro em um campo de guerra e beijou a mão de Renata como a uma dama da mais fina classe, o clima era de festa, o ato foi recebido com olhares pilhéricos.
Passado alguns momentos Leo com o olhar etílico, disse que gostaria de falar com Renata em particular, a menina em uma mistura de curiosidade e ironia como se já adivinhasse aquilo que estava por vir se deixou ir com ele, que a levou para fora do bar pelas mãos. Mauro olhava divertido para a cena, tomava sua cerveja no balcão e ria malicioso.
Finalmente Renata entra trazendo Leo pelas mãos e anuncia em voz alta:
-Gente, que bonitinho o Leozinho me ama!
Que jogada maligna essa a qual meu amigo se submetera, ele se declarara para Renata na esperança de começar algum tipo de relacionamento com ela, mas ela não o levara a serio e pior que isso transformara o pedido sincero em um escárnio ridículo, expondo a voz alta os mais profundos sentimentos do coitado.
Mauro continuava sorrindo malicioso e bebendo sua cerveja, já Leo subia as escadas do boteco humilhado porem tentando manter um mínimo de dignidade e fingindo ser tudo uma brincadeira, não funcionava porque estava visivelmente abalado. Momentos depois em frente ao macho alfa o Mauro, Renata com um riso zombeteiro na boca repetiu a Mauro o ocorrido e pediu um selinho a meu amigo que prontamente atendeu, em seguida ela se aconchegou ao namorado enorme e no meio do bar ficou Leonardo sem saber como agir.
Os dias seguiram-se desta forma, agora Leonardo era oficialmente apaixonado por Renata porem de uma forma cômica há não ser levada a serio, era ele um fraco uma figura de se ter pena, e meu amigo em sua queda lenta na garganta do inferno da paixão aceitara o papel de palhaço.Como não tinha como entrar na competição direta com Mauro que dominava a garota com um estalar de dedos preferia comer uma migalhas na forma de selinhos zombeteiros e carinhos cercados de risos. Leonardo aceitava tudo como se fosse um jogo cômico entre amigos, não era, tratava-se de uma perversão sadística do casal, Leo virara um brinquedo.
Por diversas vezes tentei acordá-lo do estado doente de paixão no qual estava mergulhado, todos eram inúteis.Foi assustador estar ali ao lado e não ter poder para fazer nada com relação a isso, meu amigo parecia dominado por algo maior que o submetia a estas humilhações que em outra situação teria facilmente se desvencilhado.
Mauro ficou mais próximo de Leonardo e este para não mostrar que sua paixão por Renata era algo a ser levado em consideração, fato que o colocaria em uma posição de enfrentamento, tornava-se amável alem da conta, um amigo e confidente. Renata ria dos dois "Olhe são melhores amigos" e o triste teatro seguia, porem bastava que fosse embora e o velho Leo começava sua ladainha, chorava, me dizia o como o seu amor pela garota era tão enorme, era sem limites e eterno, trabalhava chorando e já não tinha vontade de ir ao bar durante a semana para jogar sinuca, ia somente nos fins de semana e ai teria certeza de encontrar o casal.
Em um destes finais de semana Mauro chamou Leo no canto e ficou ali conversando com o cara, depois soube o teor da conversa, a esposa de Mauro desconfiava que o marido "estivesse envolvido com alguém", Mauro prontamente negou e falou sobre seu grande amigo de boteco, Leonardo! .Para não despertar mais a desconfiança da esposa combinou com Leo para que ele fosse buscá-lo em casa a vista da mulher e assim foi feito.
No outro fim de semana Renata chegou cedo e ficou sozinha passeado pelo Gordo e bebendo conosco , isso deixou Leo andando em nuvens, ele finalmente tinha alguns momentos com sua amada sem ninguém por perto, eu os deixava sozinhos e ia trocar uma idéia com os manos das antigas que sempre estavam por ali.
Leonardo sempre atento ao relógio, então como foi o combinado saiu para buscar Mauro. Subiu na motinha e colocou o enorme capacete branco e muito velho "Em breve estou de volta!"
Eu não tinha conversa com a garota, era uma pessoa com a qual eu não queria ter nenhum tipo de relação, ela ficou no balcão tomou uns dedos de cachaça pura e ficou sentada na porta do bar esperando.
Finalmente um barulho muito alto da velha moto do Leo, era Mauro que vinha pilotando sem capacete, vinha tentando empinar ou fazer alguma manobra do tipo, Leo estava se agarrando na garupa tentando não cair. Pararam em frente ao bar.
Leo desceu da moto e Mauro continuou montado.
-Vamos dar um role loirinha? - Mauro convidou Renata para sair com ele.
Atônito Leo tentou falar sobre a segurança dos capacetes e estendeu o seu para Renata que rindo recusou, ele perdera o controle agora sobre o seu meio de transporte...
-Valeu grande! - disse Mauro para Leo - Logo estaremos de volta, agüenta ai esta bem! - Logo saiu com a Renata na garupa sem ouvir a resposta.
Dentro do Boteco as pessoas se divertiam e Leonardo sofria, as horas passavam rápido a noite navegava para dentro da madrugada e nossos amigos iam se despedindo um por um, ate que sobrou nos três, eu por piedade, o Gordo dono do boteco arrumando o estabelecimento e Leo muito aflito - Onde eles foram?...Será que sofreram um acidente?
As quatro da madrugada a moto chegou com Mauro, ele havia deixado Renata em casa antes de ir ao bar buscar Leonardo, era o momento do gordinho assumir o controle de sua moto e colocar seu capacete para levar seu carrasco para casa. Pelo que eu ouvi depois tudo deu certo a esposa de Mauro ficou brava pelo horário mas engoliu a mentira que ele estivesse apenas bebendo com os amigos.
Depois desta experiência Leonardo virou uma espécie de moto-boy para o casal, a mesma cena se repetia todo final de semana, ingênuo Leonardo queria saber para onde iam de moto.
Certa vez estou em casa e chega Leonardo aparvalhado com uma nova situação, Mauro havia terminado com Renata, ele via isso com a sua grande chance para se declarar de modo mais contundente, chamou-me para escolher um par de alianças queria aproveitar a chance de pedir a garota em casamento.
-Em casamento? - Você esta louco, será que você não vê as humilhações que ela fez te passar, em algum momento você deixou de ser o Leo que eu conhecia e virou uma pessoa estranha, uma espécie de masoquista que suporta tudo.
Leonardo ria como se fosse tudo uma piada, e insistiu em que eu fosse ajudá-lo a comprar as alianças.
Nos fomos e ele comprou algo muito alem de seu poder econômico, fiquei sabendo que era aniversario da Renata e que ela estaria sozinha, essa era a grande jogada.
Não fui testemunha ocular mas neste ponto o próprio Leo começou a recuar. Ele chagou no aniversario e pretendia propor o casamento em um momento oportuno durante a festa, a menina estava visivelmente triste...Alvoroço na varanda, era Mauro que viera se desculpar, trouxera um animal empalhado, deste de qualidade ruim que se encontra na beira das estradas, ela se desfez em uma cachoeira de lagrimas. Leonardo escondeu as alianças e foi embora cheio de vergonha.
Quando me contou isso, eu achei que era um bom sinal, mas não foi, agora ele estava disposto a qualquer coisa para casar com a garota, mesmo que fosse enfrentar Mauro.
Durante este período deixamos de ir ao Gordo, cada um de nos ia para um lugar diferente, eu estava cansado de ver aquele cara chorando por alguém que não valia a pena, de tentar chamar a razão, de tentar gritar e brigar...desisti do caso e o velho Leo caiu muito em minha escala de amigos. Porem um dia saindo do trabalho ele me chamou para comer um pizza em um dos nossos clientes.
A pizzaria era boa, tinha forno a lenha, serviam a massa com bastante molho de tomate e a medida certa de queijo nem uma miséria e nem uma quantidade que vai te matar do coração devido ao colesterol. Sentamos e a conversa fluía entre um chopp e outro, finalmente eram outros assuntos embora fosse sobre as mesmas bandas de sempre e sobre alguma ficção cientifica, parecia que tínhamos voltado no tempo há pouco mais de um ano quando a bruxa malévola entrara na vida do cara.
Tudo corria bem, ate que Leonardo começou a agir de uma forma artificial, e olhava por cima de meu ombro, tentei prosseguir a conversa, mas o estado hipnótico que ele entrara intensificara e seu olhos vertiam gordas lagrimas.
-Que foi que houve?
Seguiu-se um silencio e um tentativa inútil de meu amigo se recompor, por fim uma voz fraca de um morto saiu de sua garganta.
-Ela esta ali.
Olhei por cima do ombro e vi Renata com Mauro aos beijos e abraços lascivos, de maneira como nunca pareciam em publico, eles não haviam percebido nossa presença ali de modo que podíamos trocar de ambiente.
-Leo vamos trocar de lugar!
-Não tem problema eu posso ficar aqui mesmo- Respondeu Leo com o rosto vermelho e com o nariz escorrendo, chorando como uma criança.
- Olha quem esta ali amor! - ouvi o grito eufórico da menina, olhei e ela vinha em nossa direção.
Uma das mais bizarras cenas se deu em minha frente. Ela ignorando o choro absurdo do Leonardo começou a cortar a pizza dele em pedaços pequenos enquanto mantinha contato visual com Mauro, os dois riam e meu amigo a minha frente chorava copiosamente.
Ela em movimentos delicados e com voz suave dizia:
-Não chore não Leozinho, come a pizza, esta gostosa! - e servia os pedaços cortados na boca do meu amigo como se ele fosse uma pessoa incapacitada.
-Ah! não chora vai!...Isso come, come!
Suportei aquilo por alguns instantes mas resolvi intervir.
-Renata, pode ficar ai com a pizza se você quiser, nos estamos de saída, o Leonardo não esta passando bem.
Levantei-me da cadeira e disse para o Leo se levantar, ele ainda ficou na duvida, mas se recompôs.
Renata continuava rindo onde estava, Mauro de longe ria também, fomos eu e meu amigo ate o caixa pagar a pizza, ele tentava justificar a garota o tempo todo, que tudo era "somente uma brincadeira" etc.
Na saída da pizzaria eu vi que toda aquela situação que eu acompanhava como espectador estava a me prejudicar.
-Leo, não vou mais te acompanhar na tua decadência, esta cena que vi agora vou a coisa mais humilhante que vi na minha vida, não quero mais ouvir falar nesta garota e nem quero que ela vá ao escritório, se você não tem amor próprio eu tenho.Você ainda não conseguiu ver mas ela se trata de uma inimiga que você tem e que esta minando a sua própria existência, em algum momento ou você vai matá-la ou você vai se matar.
Os dias normalizaram, fazíamos a diagramação do jornalzinho ouvindo Uriah Heep, Deep Purple e Iron Butterfly eu não ouvia mais falar na tal da Renata, Leonardo parecia ter voltado ser a pessoa que era.Eu não me atrevia a perguntar sobre a menina para não ativar coisas passadas.
Um dia fui ao trabalho e Leonardo não foi, tentei ligar para o apartamento dele só caia na secretaria, eram quase cinco horas quando o Luis que fazia as vendas veio me contar a triste noticia, Leonardo havia morrido de madrugada em acidente de moto. Fiquei chocado e assim passei algum tempo.
Um dia em fim, depois de passados alguns meses e eu ter abandonado o jornal, resolvi aparecer no Gordo e rever o pessoal, conversando fiquei sabendo de detalhes dos quais eu não sabia:
-Naquela madrugada o Leo veio trazer a moto para o Mauro e a Renata saírem - contava o Gordo que presenciara o evento - Estava diferente, barbudo e cabeludo, não usava o velho capacete branco de sempre. Leo ficou bebendo muito ate a volta da moto mas desta vez o casal voltou junto. Estavam brigando, Renata apanhara de Mauro no motel e tinha o rosto machucado. A garota procurou abrigo junto do amigo Leonardo, ele a tomou pela mão e saíram pela noite. Leonardo a colocou na garupa e foram embora ele parecia feliz, foi a ultima vez que o vi.
No boteco tocava uma fita do Iron Butterfly.