a viagem cotidiana
hoje de manhã N. saiu para seu novo trabalho. foi duro consegui-lo e agora lutará para permanecer no emprego. afinal estes tempos não estão fáceis. com esses pensamentos se dirige para o ponto onde espera alguns minutos pela condução que o levará.
no primeiro dia tudo é agrado e surpresa observando a paisagem daquela parte da cidade que nunca havia visitado. nem se dá conta da distância do percurso até seu trabalho. quando bate a fome come seu lanche preparado com esmero. nisso já é de tardezinha e ainda nada de chegar. não importa. pra quem esteve desempregado tanto tempo qualquer esperazinha é coisa pouca. anoitece. pensa em ir falar com o motorista sobre a possibilidade de este ter errado o percurso mas está cansado e resolve cochilar um pouco. pega num sono profundo sem sonhos e quando acorda já é de manhã novamente.
olha sobressaltado em derredor. os ossos estão doendo. um torcicolo pela péssima posição em que dormiu. sua roupa está amarrotada. percebe finalmente que ele é o único passageiro do ônibus. resolve falar com o motorista que se irrita por ser interrompido. pergunta se N. não sabe ler (a placa diz “converse com o motorista somente o necessário” mas para N. o que tem pra falar é extremamente necessário). o motorista desacelera e explica que a fábrica (pela primeira vez N. ouve que é uma fábrica) fica distante e que chega a ser quase uma viagem intermunicipal. pergunta pelos outros funcionários e o motorista diz que daquele bairro somente N. é funcionário da fábrica e a rota não passa por nenhum outro lugar que tenha algum funcionário.
após dizer isso o motorista fecha a cara e faz que não está ouvindo nenhuma das perguntas posteriores de N. que então vai se sentar mais ou menos satisfeito com as informações. está com fome e ainda resta alguns goles de café frio. a repetida paisagem perde o brilho e um certo tédio toma conta de N. enquanto brinca com uma bolinha de exercícios ortopédicos no seu bolso. chega mais uma noite e N. pondera que isso atingiu o limite. o motorista deve estar testando sua paciência ou simplesmente é um leviano. pode na verdade ser alguém que o tenta impedir de chegar até a fábrica. quem sabe não tem um amigo desempregado e com esta viagem talvez esteja me afastando de meu objetivo para que seja demitido e seu amigo tome meu lugar é o que pensa de súbito N. como não havia percebido antes?
corre então em direção ao motorista mas neste momento uma brusca chacoalhada do veículo faz com que N. se desequilibre batendo com o queixo em uma das duras cadeiras. a dor o grito o sangramento inevitável faz com que pare um instante. está cansado e perplexo com tudo aquilo agora isso. se recupera e chega próximo ao desgraçado que ao ver o sangue no lenço de N. lança um olhar de reprovação.
– quer me fazer pensar que estou errado cretino mas agora entendi sua intenção de me prejudicar! pare já o ônibus!
– isso tudo é um desatino seu. cumpro apenas ordens. não quero prejudicar você.
– pare o ônibus. quero descer! estou sangrando cansado e amarrotado sem condições de me apresentar no trabalho!
– já disse que não posso! assim me atrasarei.
– que piada! aonde quer chegar? no inferno por acaso!
– para quê grosserias? você já começa mal assim… fica nervoso e se machuca. veja que o outro está tranqüilo. siga seu exemplo.
é aí que surpreso N. nota um sujeito sentado um pouco atrás de sua poltrona. ele observa N. sem expressar nada em seu rosto quase como se estivesse paralisado. N. anda em direção a ele e senta a seu lado sem pedir licença.
– quando chegaremos? chegaremos?
– lógico filho. daqui a pouco estarei em casa que fica logo após aqueles pés de eucalipto à direita da avenida.
– mas e a fábrica? refiro-me a ela.
– ah, a fábrica. hoje foi um dia de trabalho duro não acha?
– não pode est…
nesse momento o senhor levanta e com muito jeito despede-se de N. e se joga do ônibus pela janela. N. olha assustado o homem rolando pela calçada como um rocambole estragado. já de longe o vê se levantar limpar a roupa e seguir caminhando. Está amanhecendo e N. reconhece seu bairro. corre para o motorista e pede por uma explicação. finalmente o motorista para o ônibus em frente a casa de N. abre então a porta da frente.
– estamos sempre retornando. você quer chegar em algum lugar? é melhor que fique aí mesmo. – e empurra N. com força para fora do ônibus.