O RETRATO
Minha tia tinha segredos. Ela guardava cuidadosamente embrulhado em um delicado tecido rendado, um retrato emoldurado dentro de um baú velho, passado à sete chaves, escondido debaixo da cama. Ninguém, nem mesmo o marido, meu tio, sabia de quem era a dita foto emoldurada que ela venerava com tanto afinco.
Meu tio não se ocupava sequer em querer saber de quem era a foto misteriosa. Era um homem que lidava com o gado e passava a maioria do tempo dentro dos currais e dos estábulos, não se interessando por caprichos de mulheres. Ele até fazia troça com aquela história.
- Deve ser a minha foto pra espantar as muriçocas! – Dizia galhofando, em estrondosa gargalhada.
Muitas vezes, minha tia entrava no quarto, trancava a porta por dentro, demorava quase o dia inteiro enfurnada, a título de fazer uma arrumação. Há quem diga - por ter visto uma vez pelo buraco da fechadura - que ela ficava olhando o tal retrato por horas a fio, com lágrimas nos olhos, petrificada diante daquela moldura.
Era como se fosse um ritual.
Quantas vezes - nem me lembro mais - perguntei para minha velha tia, de quem era aquele retrato, que ela guardava com tanto carinho. Ela me olhava com um olhar terno, um sorriso tímido e gentil, então acabava desconversando, entabulando outro assunto e não dando chance para mais nada.
Aquele retrato misterioso aguçava a curiosidade de todos naquela casa. Imaginava-se diversas teorias da conspiração. Seria o retrato de um amante, uma paixão inesquecida, perdida nas brumas do tempo, a quem ela dedicava aquela veneração e tamanho apreço? É certo que não era a foto do pai, pois não seria motivo de tanto segredo e mistério, pois havia outras fotos dele penduradas pela casa. Muitos se indagaram sobre aquele retrato, mas minha tia tinha sempre arranjava uma desculpa para não se falar sobre o assunto.
Passou-se o tempo, até que o destino embaralhou as cartas.
Numa manhã, recebi a notícia de que minha tia fora acometida de uma dor repentina e atroz, que não lhe deu tempo mais para nada. Padeceu silenciosamente, sem grandes embaraços. A morte abocanhou-a com seu manto e levou também com ela seus segredos. Embora seja certo de que, talvez, a morte tenha mais segredos para nos revelar do que a vida.
No dia seguinte da morte dela, fui ver como estava meu tio. Conversamos pouco. Ele circunspecto, o olhar vazio, o semblante sereno. Eu, aguçado ainda pela curiosidade, perguntei para ele sobre aquela foto misteriosa. Ele sorriu. Disse-me que foi a primeira coisa que ele pensou em olhar, depois que ela tinha morrido.
Enfim, o mistério da foto seria revelado, pensei, aproximando-me de meu tio.
- Quando ela morreu... - Disse ele devagar, os olhos fechados, pensativo. - Fui até o velho baú e peguei a moldura, que estava embrulhada em um pano, mas não tive coragem de olhar. Como ela nunca revelou para ninguém, nem mesmo para mim, de quem era aquele retrato, então, não tive coragem suficiente de olhar e ver de quem era foto.
- O que o senhor fez com o retrato? – Perguntei, aflito. Não me cabia mais de tanta curiosidade.
- No velório dela, antes de fechar o caixão, sem que ninguém percebesse, botei o retrato do jeito que o encontrei dentro do caixão, junto com ela. Pensei que seria certo que ela levasse esse segredo com ela.
Fiquei pasmo e ao mesmo tempo um tanto quanto decepcionado. Como poderia existir alguém como o meu tio, sem ter um mínimo de curiosidade? Ele teve nas mãos a chance de descobrir aquele mistério e o que ele fez? Não podia acreditar que ele tenha feito aquilo.
Olhei para meu tio.
Ele agora estava com um sorriso no rosto, como o sorriso dela, um sorriso tímido e gentil.