Mau dia para morrer

Recusou-se a morrer. Mesmo depois de testemunhar a indiferença dos pais ante a notícia dada pelo Dr. Arthur...”Não havia nada mais a se fazer”. Ainda assim, recusou-se a morrer. Ignorou todo o trabalho minucioso do legista, que comprovou a causa da morte: ferimentos por arma branca. Também não deu importância a todo o trabalho realizado pela equipe da agência funerária, que banhou e preparou o corpo para a despedida dos entes queridos, uma vez que recusou-se a morrer. Tentou mandar, em vão, o padre calar-se, quando do sermão realizado frente à urna funerária na qual depositaram seu corpo, em meio a flores que detestava. Tio Davi parecia triste, o que lhe soou estranho, afinal nunca se gostaram... mas continuava recusando-se a morrer. Constatou que não conhecia boa parte dos presentes, e pessoas que gostaria que ali estivessem não o fizeram. Recusou-se a morrer, mesmo quando travaram a tampa do caixão. Recusou-se a morrer, mesmo quando baixaram o mesmo e depositaram os primeiros torrões de terra sobre a superfície fina que, muito em breve, cederia ao peso do solo, em meio a ladainhas religiosas que sua mãe tanto, digamos, apreciava. Recusou-se a morrer, porém ninguém lhe dera ouvidos e, um a um, foram deixando o cemitério, alguns com palavras emotivas e a esperança ou fantasia de que ele as ouviria. Recusou-se a morrer, e esperou pacientemente estar sozinho para, finalmente, erguer-se dali e, passo a passo, seguir para casa, que não ficava longe, três ou quatro quadras de onde o tinham deixado. Recusou-se a morrer e, chegando ao querido lar, pensou que não precisaria mais da chave. Entrou, abriu uma lata de cerveja que apanhou na geladeira e sentou-se confortavelmente no sofá pensando em que assistiria na TV. Era tarde de domingo.