Bacalhau supremo
Antônio revolveu a terra e adubou o canteiro,depois iniciou o plantio das mudas de gerânio.Foi aí que o telefone tocou.
__Cleide!Atende aí!__gritou para a esposa.
__Eu estou no chuveiro,Tonho!__a voz da mulher veio misturada com água e sabão.
O homem,que estava de joelhos,levantou-se o mais rápido que os seus 76 anos permitiram,atravessou o jardim num passo acelerado e subiu dois lances de escada.Na cozinha,inspirou fundo para recuperar o fôlego.Depois atendeu.
__Alô!
__Alô!Bacalhau supremo?Já chegou o Zarbo?
Antônio encostou a cabeça na parede e contou mentalmente até dez.Nesse meio tempo,ouviu a voz do outro lado falar "alô" três vezes.Então respondeu:
__Amigo;você quer falar com a loja de bacalhau?
__Isso!__a voz se animou,provavelmente já saboreando o peixe__Chegou o Zarbo?
__O número do folheto está errado!O último algarismo é seis,e não sete!
__Poxa..Desculpe aí ..Foi mal__a animação havia desaparecido da voz.
__Não tem problema.Um bom dia para o senhor.
Ao colocar o fone no gancho,Antônio ficou alguns segundos olhando para o aparelho de cor negra,aparafusado verticalmente na parede.Logo depois,reparou nas marcas de terra dos seus chinelos no piso alaranjado.
__Quem era?__perguntou a esposa,que entrava na cozinha enrolada numa toalha roxa e enxugava o cabelo com outra cor de abóbora.
__Bacalhau!__ a palavra saiu dos seus lábios como se fosse um código para encrenca.
__Mas não é possível!__Cleide abriu os braços,quase deixando a toalha abóbora cair__Isso não vai ter fim?
__Acho que só quando o ano,e o folheto da promoção,acabarem...
O casal entreolhou-se,desanimado.lá fora,a tarde de primavera avançava indecisa entre a ventania,o sol e a chuva.
Um breve comentário do autor:Este pequeno drama não aconteceria se Antônio e Cleide já tivessem aposentado o telefone fixo,como a maioria da população.O casal,porém,odiava celulares,apesar dos protestos das duas filhas,já casadas.Os dois andares da residência pioravam tudo.
Fim do comentário.
Antonio limpou a terra do chão da cozinha,plantou os gerânios,tomou banho e foi tirar um cochilo.
O telefone tocou minutos depois.Assim que encontrou o aparelho em meio a penumbra do quarto,atendeu com voz de sono:
__Alô.
__Alô!Vocês tem aí mulato velho?
Desta vez,Antônio não contou nem até cinco.
__Nem mulato velho,nem branco novo e nem negro de meia idade!Aqui é casa de família!O telefone do folheto está errado!O último número é seis!SEIS!
__Me desculpe.
__Tudo bem.
Com o sono arruinado ele foi até a cozinha,onde Cleide preparava um bolo de chocolate.
__Já acordou?__perguntou a mulher,surpresa.
__Bacalhau!
Cleide parou de mexer a massa e jogou a colher na pia.
__Isso não pode continuar!É a semana inteira!E o pior é que a gente não pode deixar de atender!Temos duas filhas,netos,parentes idosos!Coloca uma roupa aí que nós vamos lá agora!
__Mas o que vai adiantar?Não é melhor ligar antes?
__Ligar não vai resolver!Eu quero falar pessoalmente!
Antônio não retrucou.Vestiu bermuda,tênis e camisa.Minutos depois,estavam na porta da loja.
__Por favor,quem é o dono da loja?__Cleide perguntou a um funcionário que pesava uma posta enorme do peixe.
__É dona__respondeu o empregado,e apontou para uma mulher sentada atrás de um balcão,situado na parte dos fundos do estabelecimento.
O casal foi até ela.Cleide iniciou a conversa:
__Boa tarde,senhora
__Boa tarde__respondeu a mulher,sem tirar os olhos dos papéis coloridos nos quais fazia riscos e escrevia.
__Senhora__Cleide deu uma tossida___ Seu folder está com o número de telefone da minha casa ao invés do seu.Todos os dias nós recebemos várias ligações de pessoas querendo comprar bacalhau.
A mulher primeiro arregalou os olhos,depois levantou-se e mostrou para o casal um dos papéis em que estava trabalhando.
__Eu estou justamente corrigindo esse erro agora!Não sei o que aconteceu na impressão...a gráfica nunca tinha cometido um furo desses antes e ...
A mulher parou de falar e passou a encarar Antônio.Segundos depois,disse com uma voz melosa:
__Totonho?É você?
Antônio olhou mais atentamente para ela e respondeu:
__Mirinha?
O passo seguinte foi um abraço bem apertado,sob o olhar surpreso de Cleide,que ficou ali,estática.
__Vocês se conhecem?___perguntou Cleide,franzindo a testa.
__Ora se nos conhecemos!Nós fomos noivos!__revelou a mulher
__Noivos?__a mulher lutava para esconder o ciúme.
__A Mirinha e eu chegamos a trocar alianças de noivado,mas depois ela recebeu uma proposta de trabalho na Bahia e decidiu ir ....__Antônio resolveu parar de falar ao ver o pescoço da patroa,que começava a ficar vermelho.
__Bom..Então está resolvido!A senhora corrige o seu folder e fica tudo bem!Vamos Tonho!__ordenou a esposa ciumenta,enquanto puxava o marido para fora da loja.
__Esperem!__pediu Mirinha__Eu quero dar um presente para vocês.Capilé!__gritou__Traz aquela sacola branca que está no depósito.
Logo depois,o funcionário chegou carregando uma sacola branca.
__Aqui tem dois quilos do nosso melhor bacalhau.Me desculpem pela amolação.
Antônio pegou a sacola sem pestanejar.Minutos depois,o casal já estava no carro voltando para casa.
__Você aceitou o bacalhau de primeira...__disse Cleide,olhando a paisagem pela janela do veículo.
__E por que não deveria?
__Eu não sabia desse seu noivado...__a mulher continuava a olhar a paisagem.
__Foi coisa de adolescente..Bobeira.
__Sei...__ela virou o rosto e o fitou com um olhar mais salgado do que o bacalhau.
Ao chegarem em casa,ele foi trocar de roupa e ela ficou na cozinha,desembrulhando o "presente".
Para aliviar o calor,Antônio abriu a porta da varanda.A visão das pessoas andando na rua o acalmava.Ligou a televisão e começou a acompanhar um telejornal.Reinava a paz.
__Seu tarado!__a mulher entrou no cômodo segurando um cartão de visitas numa das mãos e a bolsa do bacalhau na outra.Seu pescoço, suas orelhas e bochechas estavam rubras.
__Mas o que foi..__Antônio sentou-se na cama,desnorteado.
__A vagabunda escreveu o número do celular dela nesse cartão que estava dentro da sacola!
__Você está imaginando coisa...
__O escambau!Mas olha o que eu vou fazer com esse peixe desgraçado!
Descontrolada,Cleide passou a arremessar as postas do bacalhau varanda a baixo.
Uma família que remexia os sacos de lixo da rua em busca de material reciclável,ao ver a iguaria caindo na calçada,passou a recolher tudo com entusiasmo.
__Mãe.Não tinha um programa antigo na tv em que o apresentador jogava bacalhau na platéia?__perguntou a menina de treze anos para a mãe,de trinta.
__Acho que sim Filha..Se não me engano,o nome dele era ...Ah!Lembrei!Chapinha!
A menina se juntou ao irmão de doze e os dois começaram a entoar um coro de agradecimento:"Viva o Chapinha!Chapinha!Chapinha!"
Antonio não ouvia a saudação pois tentava,sem sucesso,ligar para suas filhas,as únicas que poderiam acalmar a mãe.
Na loja de bacalhau,Mirinha procurava um determinado cartão no qual havia anotado o celular de um importante fornecedor.
Não encontrou.
Cleide,após terminar de jogar o bacalhau,começava a cortar as roupas do marido com uma tesoura.
Adoro o clima de final de ano.