O Diagnóstico

A porta rangeu num eco e bateu, os passos toparam cansados sobre os tacos até a poltrona de feltro carmesim que depois também rangeu, só que mais agudo.

- Já que está aqui, conte-me...

- Vamos então à primeira das camadas, a angústia. A sensação de tristeza aguda, de solidão, de abandono, e também uma falta de sentido que, tamanha, chega às vezes a fazer sentido.

- Qual?

- O de que as coisas possam estar além a ponto de que eu não possa tocá-las, embora queira muito e haja depositado algumas de minhas maiores esperanças nelas.

- E o que mais? A outra camada.

- A sensação de que às vezes vou me distanciando e distanciando até que não mais pertenço a aqui. Surtos momentâneos em que tenho a impressão de estar navegando por alguma outra realidade. E que suas línguas e modos me contaminaram a tanto que por aqui já sou como um estrangeiro.

- Exemplifique.

- Certos padrões que antes me faziam sentido, assim como a toda humanidade, de repente já não fazem mais: por que falamos assim? Por que a soma de tantos é tantos, e não tantos? Por que é que andamos de pé, e não rastejando?

- Falamos pelo bem da comunicação e convivência, a soma é lógica e rastejando sempre esfolaríamos a cara.

- Pois é. Lógica, por que precisamos dela?

- Para nos guiarmos e facilitarmos o caminho.

- Por que precisamos de um caminho?

- Para caminharmos.

- Até onde?

-...

- Certas vezes sinto que estou me afastando de meu espírito, e que sobra somente a alma, enérgica e estúpida, buscando um sentido vão nas coisas que passam.

- Talvez por isso a angústia...

- Tudo o que os séculos construíram até agora, esse enorme castelo de areia, me aparece como que de baixo, na vista de uma ave que espirala, e está tão frágil, tão prestes a desmoronar que de repente não há mais conforto em querer morar por lá.

- Talvez por isso a solidão...

- Mas de repente outra vez, quase como um solavanco da gravidade, eu volto. Estou aqui para ouvir e sorrir daquelas mesmas vozes que brotam dos cantos. Com só um detalhe a mais, sobram-me as memórias de quando, sem querer, fui para o alto e vi o castelo do topo. E começa então a competição de quem mais rejeita: a realidade a mim ou eu à realidade.

- Talvez por isso o abandono... Houve certa vez um sujeito disse: “o homem quando sonha com as nuvens, passa, desperto, um dia inteiro a encarar o céu. Pois lá ele esteve e para lá quererá voltar.”.

- da Vinci... E então, doutor, qual o meu diagnóstico?