NA SALA DA CASA
NA SALA DA CASA
CONTO
Sentada próxima de uma das janelas da ampla sala da casa, a mulher de meia idade olhava abstraída para a paisagem aprazível do dia que amanhecia. O sol ainda morno na linha do horizonte, escondia-se por entre os galhos das árvores, mas já revelava que aquele dia de verão iria ser bem ensolarado.
A mulher acostumou-se a sentar-se ali, depois que o marido desencarnou, vítima de um AVC repentino, e justamente naquele dia fazia um ano de seu falecimento. Era hábito dele ali sentar-se numa confortável poltrona, tanto nos primeiros instantes da manhã como nos finais instantes da tarde.
Ela sentia muita falta dele, que sempre lhe foi um marido exemplar. Um companheiro fiel, carinhoso, responsável, cumpridor dos seus deveres, de boa índole moral. Tinham um casal de filhos que já estavam casados. Ambos lhes deram quatro netos. A filha, tinha dois filhos. O filho, duas filhas.
Desde que os filhos se casaram, a ampla casa, uma mansão, foi ficando um tanto vazia nos dias que se sucediam, e eles foram se consolando um ao outro através do grande amor que os unia, suprindo a falta do casal de filhos que haviam constituído a própria família. No entanto, eventualmente, sentindo a saudade natural dos pais, ora um ora outro, ou os dois, vinham visitá-los na companhia dos netos, e a alegria instantânea prevalecia entre as três gerações familiares.
Quando desencarnou, o marido era um empresário bem sucedido, pois herdou do seu pai os três Atacadões, que o filho, Administrador de Empresas, gerenciava as três lojas atacadistas de produtos alimentícios. Já a filha, era jornalista, e trabalhava na chefia editorial de uma emissora de TV. E ela, a viúva, era Pedagoga, mas não exercia a profissão.
O casal tinha um hobby: gostavam de viajar. Desde que o marido entregou a direção dos negócios ao filho, combinou com a esposa que pelo menos uma vez por ano viajariam para conhecer diversos países, sendo esta, a forma que eles encontraram para descansar, distrair-se, viverem a vida, sobretudo, para saírem da rotina dos dias anuais contínuos.
Sentada na poltrona, antes ocupada por ele, às primeiras horas da manhã, com os olhos jorrando lágrimas, ela pensava: desolada e abatida pela visível tristeza no semblante marcado pelas rugas carnais dos tempos vividos, que, há exatamente um ano, no início do último verão, quando eles estavam prestes a viajarem de novo, a morte física súbita e indesejável, a sempre "indesejada das gentes", como diria Manuel Bandeira num de seus famosos poemas, interrompeu a vida do seu amado esposo.
Tradicionalmente católica, era frequentadora junto com o marido das missas dominicais, e em casa fazia as suas orações quando sentia necessidade em alguns momentos de ter a sua conversa íntima com Deus. Lia as Escrituras para ter a compreensão básica dos preceitos e manter a sua fé cristã em Jesus e em Deus.
Às vezes, sem se preocupar em entender por que certas coisas lhe ocorriam, costumava ter sonhos, visões, pressentimentos, e a vaga sensação da presença estranha de alguém ao seu lado, sem distinguir, no entanto, a visão clara da entidade. Não sabia por que tais fatos lhe aconteciam.
Ficava temerosa e apenas orava para que "as coisas do mal" se afastassem dela. Temia também comentar tais ocorrências sobrenaturais, do mundo invisível ou dos mortos (que na verdade estão bem vivos), nem mesmo com o marido, que era também católico, mas agia, assim como ela, como um religioso convencional.
De tanto pensar no marido morto carnalmente e desencarnado espiritualmente, ela fechou os olhos e adormeceu. Em instantes, sentiu uma paz inefável. Como num sonho, viu sair de seu corpo físico, outro corpo análogo, que, envolto numa aura luminosa, moveu-se flutuando pela ampla sala.
A mulher, que momentos antes, estava triste e consternada, agora revelava encanto, deslumbramento, enlevo, sentindo a sensação de tamanha felicidade. Quando viu aparecer, de repente em sua frente, uma entidade sorridente. Ela também lhe sorriu e se sentiu íntima daquele ser de luz.
E, logo lhe indagou:
- Me parece que te conheço, mas não me lembro de onde... Quem é você?
- Eu sou o seu Anjo da Guarda.
- Então é você que sempre sinto ao meu lado?
- Sim. Te acompanho em muitas encarnações. Sou o seu Anjo Protetor. Um Bom Espírito que só quer o seu bem.
- Estava triste a pouco instante, porque faz um ano que o meu marido morreu, mas agora, vendo você, sinto-me feliz.
- É preciso fazer-se uma distinção: quem morreu do seu marido foi a carne. O espírito jamais morre! Apenas desencarna e continua a viver na próxima dimensão existencial.
A mulher hesitou por um momento, em seguida, continuou a lhe indagar:
- Então, se o meu amado esposo, de fato não morreu, onde exatamente ele está? Sinto tanta saudade dele e, se possível, gostaria de ve-lo, nem que seja por alguns instantes.
- O seu marido está bem. Se adaptou logo à nova vida. Em sua última vida carnal, embora fosse bem sucedido economicamente, era um homem simples, humilde, caridoso. Uma pequena parte dos seus lucros comerciais, fazia questão de doá-los mensalmente a instituições necessitadas de auxílio material. Era assim, um filantropo nato, embora não ostentasse aos outros esse modesto gesto de amor à humanidade.
- Verdade. Ele sempre foi um homem muito generoso. Tinha muitas boas qualidades. Pude comprovar isso, durante os longos trinta e cinco anos de nossa feliz união matrimonial. Mas você não me disse onde ele está e se posso ve-lo...
- Assim que desencarnou, ele logo foi conduzido a um posto de socorro, e de lá, o levaram a uma colônia espiritual tranquila para refazer-se, readaptar-se e reorganizar-se em novos projetos de sua contínua jornada existencial. Como é um espírito que gosta de servir, trabalha com outros irmãos nas regiões umbralinas, resgatando espíritos infelizes que almejam seguir o virtuoso caminho regenerativo. Há seis meses ele esteve aqui para visitá-la e a toda a família carnal que aqui deixou. Mas só agora lhe foi permitido ve-la.
A mulher, tão ansiosa e expectante para ve-lo, antes que pudesse dizer algo ao bondoso Anjo, ouviu atrás de si uma voz bem conhecida que queria tanto voltar a ouvir:
- Eu estou aqui, Lindaura! Como vai você?
Ela virou-se rápido, e quando viu o amado marido, exclamou, num gesto que mesclou surpresa e alegria:
- Arnaldo, meu amor! Você voltou pra mim, graças a Deus, e a este Anjo amigo que te trouxe de novo pra mim.
E correu para ele sorridente e ambos se abraçaram e se beijaram demoradamente.
- Se não estou sonhando, agora sei que você não morreu, meu amor, e que vamos continuar juntos e felizes pra sempre.
- Lindaura, minha amada, a vida carnal que tivemos juntos, não vamos voltar a ter. A minha carne está morta. Quem está aqui é o meu espírito revestido pelo corpo astral. Assim como você também está. Só que a sua carne ainda não morreu. Veja: ela está ali dormindo. Daqui a pouco você vai voltar a entrar nela, pra continuar a viver a sua vida de alma encarnada. Quanto a mim, virei sempre que me for possível, visitá-la, mas tenho que também continuar a minha vida de espírito desencarnado. São dois mundos distintos nos quais o espírito habita. Num, o corpóreo, a vivência do espírito é efêmera. Noutro, o incorpóreo, a sua vivência é eterna. Entretanto, a evolução espiritual se dá nos dois planos, e as inúmeras encarnações visam a alternância evolutiva do espírito, ora em vários corpos físicos formados para ele habitar, ora fora desses corpos, habitando nas regiões umbralinas infelizes e nas colônias espirituais felizes. Os laços afetivos jamais se rompem. Assim como estivemos juntos encarnados por algum tempo, e estamos nos reencontrando dessa forma, com você encarnada e eu desencarnado, podemos nos reencontrar amanhã com ambos estando desencarnados. Só lhe peço uma coisa: dê continuidade a sua vida sem se preocupar comigo. Se ocupe com tarefas úteis, virtuosas, que lhe edifique a alma. Vai lhe fazer muito bem. Renove-se interiormente. Estude novos conceitos espiritualistas para compreender melhor os aspectos existenciais que Deus nos reserva com o fim prodigioso do nosso melhor evoluir. E, não se esqueça do essencial: "ame a Deus sobre todas as coisas, e ao próximo como a você mesma." A vida continua... Até qualquer dia... No porvir, certamente nos reencontraremos...
Lindaura despertou, ouvindo a voz da empregada doméstica que a chamava pra tomar o café matinal. Embora lá fora a manhã estivesse bem ensolarada, uma brisa fresca adentrava pela janela e a enchia de boas energias e boas vibrações, fazendo-a relembrar dos bons momentos oníricos que tivera com o amado esposo e o Anjo Protetor. Sentiu uma deliciosa sensação de bem-estar interior. Logo levantou-se da poltrona, ostentando alegria, sorriso, e disposição para renovar a própria vida.
Escritor Adilson Fontoura