O sinal

“I do, i do, i do, i”, das músicas do grupo sueco ABBA era a que mais gostava, havia feito uma coletânea e a colocara em primeiro lugar, o aparelho de som o despertava sempre com esse single, não foi diferente aquele dia, quando acordou às 5:30 da manhã, tudo muito escuro, demoraria um pouco pra amanhecer, cantarolou a música até o fim, como sempre fizera, quando a segunda música deu início, pulou da cama e se dirigiu ao banheiro, acendeu a luz, olhou-se no espelho, a barba novamente por fazer, pegou o creme de barbear, pincelou todo o queixo e a região das mandíbulas, em seguida começou o processo de raspagem, primeiro de baixo pra cima, depois de cima pra baixo, sempre no sentido do crescimento da direção do pêlo, como não tinha uma barba muito cerrada, em pouco tempo havia acabado, lavou o rosto com um sabonete esfoliante e em seguida enxugou-se, achou que sua expressão estava bem melhor agora, o rosto vibrante, sem nenhum Indício de sono.

Lera em algum lugar que o correto era tomar o desjejum após a escovação, mas nunca conseguira colocar esse hábito em prática, em parte porque não se imaginava tomar o café da manhã com aquelas bilhões de bactérias mortas na boca, que provocava o característico mau hálito matinal, portanto tratou de tirar aquele gosto de cabo de guarda-chuva da boca, pegou sua escova de dente e escovou tudo minuciosamente, como sempre fizera, tratou também de escovar a língua mesmo sabendo que ia sujar

tudo de novo, cerrou os dentes e para a sua satisfação, percebeu como os tinha saudáveis, há muito que não visitava um dentista e mesmo assim seus dentes eram muito alvos e bem cuidados.

Aprendera a programar a sua cafeteira, da maneira que quando chegava à cozinha já podia sentir o cheirinho do café pronto.

Ao colocar as duas fatias de pão na torradeira, percebeu, entretanto que não havia comprado sua geléia de amoras (um hábito adquirido quando ainda estudava no colégio), mas não era importante, se contentou com o requeijão cremoso, que passou em pequenas camadas, se deliciou quando sentiu a textura crocante da torrada com a leveza do creme. Adorava, sobretudo antes de dar o primeiro gole, fechar os olhos e sentir o aroma forte do café, feito isso, olhou-se dentro da xícara, de imediato lembrou-se que sempre fazia isso quando era criança, a face sombria tremulando, como que pedindo pra escapar dali e isso só aconteceria obviamente se tomasse todo o líquido como agora, com os olhos semicerrados, lentamente, saboreando cada instante.

Terminado o brequefeste, olhou no relógio da cozinha, 5:45, o dia ainda não amanhecera, foi até a sacada e olhou no horizonte, nem sinal do sol, na noite anterior havia consultado um site de meteorologia, que havia indicado que o sol nasceria às 6 horas, 02 minutos e 25 segundos, tentou pensar em que bases eles faziam esses cálculos, sabia que no Brasil o lugar mais ao leste era o Estado da Paraíba, sem problema, pensou, ele só queria ter a certeza de ver o primeiro raio de sol do dia, aquele seria o sinal.

Voltou-se pra dentro do apartamento, o som ainda ligado nas músicas do ABBA, o hit agora era “Dancing Queen” foi ao guarda-roupa e escolheu o seu terno preferido, também o mais caro, um legítimo Dolce Gabana, calçou seus sapatos que mais gostava, feitos sob encomenda pelo mesmo sapateiro que calçava seu pai e seu finado Avô.

Indeciso foi à frente do espelho com quatro gravatas italianas, mas percebeu que a azul, por ser mais clássica, era a que lhe caía melhor.Sentiu seu cabelo opaco, pegou na penteadeira o frasco de gel e retirou uma generosa quantidade e passou por toda a extensão do cabelo.

Agora, sim seu cabelo ganhara volume, vida, e experimentou a rara sensação de estar impecável.

Sabia que nesse dia estava completando exatos 30 anos de idade, vira em um documentário na tevê, que o corpo humano começa a envelhecer a partir dos 23 anos, na noite anterior vasculhou todo o seu rosto a procura de uma ruga, procurou tanto que acabou encontrando uma, próxima a região dos olhos, no final das contas ele era tão humano como qualquer um pensou, mas ainda assim sentia se no auge da vida.

Havia usado o rolex, presente de aniversário da sua mãe apenas uma vez, quando se formara, mas hoje era uma ocasião especial e ele não abriria mão de usá-lo.Depois de o prender no pulso, olhou os ponteiros e percebeu que deveria se apressar se não seria tarde.

Foi até a área de serviço e com muito cuidado sentou-se no parapeito, quereria acabar de vez com a sua vida, mas não naquele momento, o prenúncio para o pulo seria dado apenas quando o primeiro raio de sol o atingisse, sabia que a qualquer instante tudo ficaria pra trás e começou a olhar atentamente para o horizonte, por mais que lhe tentasse não olhou pra baixo, seu bloco de apartamentos ficava no vigésimo quarto andar, não era o último evidentemente, porque acima ficava a cobertura de um senador Alagoano.

Seu coração batia forte, era todo ansiedade, olhou no relógio e viu que o sol já nascera em alguma parte do Brasil, segundo a meteorologia que lera, mas ali ainda não, lá onde o firmamento parecia encontrar-se com a superfície terrestre, podia divisar o céu tingir se com tons róseos, e observar pequenos farrapos de nuvens lentamente tingir-se de vermelho, a qualquer momento o astro rei nasceria, o ar frio da manhã fazia o seu nariz respingar, esfregou-o com as costas da mão, nada poderia atrapalhá-lo, achou que era o momento de ficar de pé, abriu os braços, em instantes ele nasceria, e no momento em que ele nascesse, tudo estaria acabado.

-Ô moço se tá pensando que é o super-homem, aquilo é de mentirinha, né de verdade não!

Aquela vozinha infantil pegou-o de surpresa, mas como isso? pensou.

O político dono da cobertura dificilmente era visto ali, ele mesmo só o viu umas duas vezes no elevador, e agora aquela criança, tentou ver de onde saía à voz, por fim descobriu um rostinho enfiado na grade de proteção, e quando deu com a carinha dela, ela lhe ofereceu um largo sorriso, tinha olhinhos vivos, cachinhos dourados, parecia saída de um daqueles quadros de pintores renascentistas, a pobrezinha ainda estava com roupas de dormir, pensou. Ficou sem saber o que fazer diante daquela situação emudeceu, com cuidado voltou-se pra dentro sem tirar os olhos de sobre a garotinha, de repente percebeu que seus lindos cabelinhos louros brilharam intensamente, só então notou que o sol acabara de nascer, não conseguia pronunciar nenhuma palavra, foi então que ouviu uma voz feminina do fundo do apartamento da cobertura dizer:

-Angelina, meu amor você vai se resfriar, volta pra caminha!

Ele ficou olhando aquele pinguinho de gente sumir pra dentro do apartamento, voltou às costas novamente e percebeu como a terra acabara de dar à luz literalmente um sol magnífico, arrebatador, ficou vendo aquela bola de energia subir lentamente na expansão dos céus e antes de voltar pra dentro do apartamento contentou por enquanto seu espírito com este pensamento: “A vida parece ter desígnios para tudo nesse universo, até pra um mísero ser humano como eu, agora sei que o futuro me trará algo de positivo ou mesmo de negativo, caso eu viva, ainda assim, eu sei que no meu íntimo tentei fazer alguma coisa, se algo quer que eu viva, me eximo de quaisquer culpa”.

Fim

Final alternativo

A vida ganhava novos contornos, tudo mudara, até a poucos momentos decidira que libertaria –se da sua vida ao primeiro raio de sol. Algo ou alguma coisa queria que ele ficasse ali vivo, mesmo ele achando que sua vida não valia mais ser vivida.

Entrou novamente no seu apartamento, foi até o seu porta – cds e localizou uma coletânea que fizera de músicas antigas e selecionou uma das que mais gostava "wonderful world" do Louis Armstrong, colocou - a no último volume e a ouviu embevecido até o fim, sabia que esta música era um hino de amor à vida, conforme a mídia sempre à apresentava, mas sabia que sua vida não era e nunca fora maravilhosa, quando a música chegou ao fim, uma lágrima teimou em sair, mas agora nada me deterá pensou, saiu correndo em direção a área onde até então estava e pulou sabendo que tudo pra sempre havia terminado.

Fim

NÁSSER AVLIS
Enviado por NÁSSER AVLIS em 22/11/2017
Reeditado em 01/12/2017
Código do texto: T6179508
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